Desde o ensaio Gira dava sinais de que representaria guinada importante na trajetória do Grupo Corpo. Mesmo sem cenário e figurinos, a potência existia. O diálogo do novo balé com Bach, no programa de estreia, apenas ressaltou a transformação em curso.
Vinte anos separam as duas montagens apresentadas em sequência em 2017. Embora religiosidade seja um ponto de conexão entre a coreografia com trilha de Marco Antônio Guimarães e a estreia com a música criada por Metá Metá nota-se o quanto o Grupo Corpo é outro.
Bach é clássico. Presta homenagem ao compositor alemão Johann Sebastian Bach com referências explícitas aos órgãos de igrejas católicas. O barroco mineiro está na sonoridade, no cenário suspenso de Fernando Velloso e Paulo Pederneiras e nos dourados figurinos de Freusa Zechmeister.
Os corpos são retos. Pernas esticadas, braços controlados. O quadril, como é característica da dança criada por Rodrigo Pederneiras para o Grupo Corpo, se desloca, mas sem que o tronco dos bailarinos saia do eixo reto e firme.
A mudança
Gira é contemporâneo. Em um momento de crescente intolerância religiosa, presta homenagem a Exu, entidade da Umbanda. Mesmo discretamente, a escolha temática carrega uma postura também política, o que é raridade na trajetória da companhia.
Rodrigo Pederneiras quis se distanciar de todos os clichês que envolvem os terreiros de Umbanda assim como suas entidades, para criar algo que fosse original. Foi a campo pesquisar e honrar o desafio que o trio Metá Metá propunha na trilha sonora.
Isso não quer dizer que Gira rompe totalmente com os movimentos tradicionais do Grupo Corpo. As marcas registradas continuam. Há a mesma exploração do espaço cênico com entradas e saídas dos bailarinos. Ordem e caos se revezam na ocupação do palco.
Mas aquele eixo, reto, duro, que caracteriza trabalhos como Bach (1996) não existe mais. O corpo em Gira é bem maleável, circular. Os braços são soltos, livres. Ao mesmo tempo em que o balé tem a velocidade que, em certos momentos, da impressão que os bailarinos vão voar, há também espaço para o transe, quase parado.
Até os pas-de-deux diferentões de Rodrigo Pederneiras, presente em todas as coreografias, ganham novas configurações. Se Gira é diálogo aberto com Exu, por que não pensar que em solos tão potentes como os das bailarinas Dayanne Amaral e Yasmim Almeida não poderia haver uma parceria do além? Seguro que tem várias.
Representações
Mesmo tendo se distanciado dos clichês do sincretismo religioso, os irmãos Pederneiras e equipe trabalharam vários significantes de Exu. As cores branca, vermelho e preto marcam presença discreta na maquiagem, no figurino e na caixa cênica. A ligação de Exu com a sexualidade também aparece em movimentos de duplo sentido. É uma relação carnal ou espiritual? É sexo ou incorporação? É a representação de um corpo dentro do outro?
Tanto o cenário de Paulo Pederneiras como o figurino de Freusa Zechmeister são bem mais simples do que nas montagens anteriores do Grupo Corpo. Primeiro porque não mudam ao longo dos 46 minutos de dança. Os bailarinos ficam o tempo inteiro sentados nas laterais do palco. Eis a representação da gira de umbanda que se completa com a plateia do teatro.
Todos os bailarinos usam, apenas, uma saia de tecido cru. Referência estilizada das vestimentas usadas nos terreiros com um porém que faz muita diferença: mulheres e homens estão com o torso nu. Não existe gênero definido. Mais uma pitada política?
[CONFIRA A CONTEXTUALIZAÇÃO DE GIRA E AS SETE FASES CRIATIVAS DO GRUPO CORPO]
Sonoridade
É curioso também pensar na música. Desde que o Grupo Corpo começou a trabalhar com compositores convidados para seus balés, a trilha muitas vezes ganhava relevo dado o peso do nome de quem a criava. Analisava-se a dança e, muitas vezes em separado, as canções. Quando apareciam vozes de cantores como Chico Buarque, Milton Nascimento, Lenine, Caetano Veloso entre outros, as citações sobre faixas específicas apareciam. Teve até música de Tom Zé composta para o Corpo que virou hit de pista de forró!
A simbiose musical e corporal gerada pelas onze faixas criadas por Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França – o Metá Metá – dificulta isso. Mesmo com participação de Elza Soares. Tudo passa tão rápido, que não parecem existir faixas isoladas. É um conjunto de peso: música, movimento, sentidos e energias. Viva Exu!