A misteriosa narradora de Correntes, novo romance de Olga Tokarczuk, não consegue plantar raízes em um lugar. A energia dela vem do movimento. Essa energia está impressa ao longo de todo o livro, que é puro ritmo, pura inquietação. Múltiplo e fragmentado, Correntes faz uma longa e intensa viagem ao redor do globo e também ao longo da história. Sendo assim, diz sobre o viajante, o estrangeiro, as conexões contemporâneas, o fascínio do homem pelo corpo humano, a vida e a morte. O livro da ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura chega pela Todavia Livros, com tradução de Olga Bagi?ska-Shinzato.
Correntes é um trabalho de difícil categorização. Composto por 116 capítulos – alguns de poucas linhas, outros com 30 páginas -, o livro segue como um rio, interceptado por uma série de afluentes. A narrativa se ramifica por diferentes histórias e personagens, saltando no tempo e no espaço. Por vezes é um relato de viagem, por outras é ficção histórica. Há momentos em que traz cartas em primeira pessoa, em outros toma como base a forma do ensaio para refletir sobre o mundo.
A vida em movimento
A narradora esbarra, como numa plataforma lotada de metrô, em uma série de personagens e de fatos. Eles são históricos e ficcionais. De modo geral, revelam olhar atento, curioso e irônico sobre história da humanidade e sobre a contemporaneidade. A inquietude do ser viajante é um dos focos aqui. Olga Tokarczuk constrói breves e intensos relatos, que se passam em salas de embarque de aeroportos, em voos, em longas viagens de trem e embarcações.
Ela escuta e nos diz relatos de outros viajantes. São seres em fluxo, movimentando-se por correntes invisíveis, por ar, por terra e por mar. Para ela, é só uma questão de tempo para que os aeroportos sejam representados na ONU como “um tipo especial de cidades-Estado, com localizações fixas, mas cidadãos em fluxo”. E mais: é onde “o nosso endereço é o número do assento no avião”.
A relação com o corpo
Outro tema essencial de Correntes é o fascínio do homem pelo corpo humano, ele próprio um mapa, um território a ser minuciosamente desbravado por meio das tecnologias desenvolvidas e disponíveis ao longo dos séculos. Viajamos no tempo, em direção aos gabinetes de curiosidades de antigos imperadores, com suas coleções raras e bizarras de tumores, acefalias e fetos que boiam dentro de vidros transparentes e de corpos humanos embalsamados. A plastinação, procedimento técnico moderno para a preservação de matéria biológica, retorna por diversas vezes ao longo do texto. Dessa maneira, pontua o inesgotável encanto pelo funcionamento e pela conservação do corpo humano.
Correntes é como o diário de viagens – que a narradora retira da bolsa em um dos seus relatos no volume – com todas as suas páginas escritas, repleto de experiências. Aqui, Olga Tokarczuk joga com os limites do romance, da ficção e da auto-ficção, costurando brilhantemente uma narrativa fragmentada e caleidoscópica.
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural, sempre gasta metade do seu horário de almoço lendo um livro. Seu Instagram é @tgpgabriel