Curadoria de informação sobre artes e espetáculos, por Carolina Braga

“Dezessete Anos” é primeiro livro de Colombe Schneck a chegar ao Brasil

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Obra de Colombe Schneck, que dialoga com “O Acontecimento”, de Annie Ernaux, é lançada no país pela Editora Relicário

Patrícia Cassese * | Editora Assistente

Aconteceu na primavera de 1984. No entanto, à época, além do pai e da mãe da então estudante Colombe Schneck, ninguém mais ficou sabendo. Foi só quando já haviam passados mais de 30 anos do evento – precisamente, em 2015 -, que a hoje escritora jornalista resolveu contar a história do aborto a que se submeteu naquele ano, quando tinha apenas 17 anos. E contar não só a demais parentes e pessoas do círculo dela, mas também a quem interessar possa, uma vez que o episódio foi o ponto de partida daquele que, naquele ano, respondia pelo novo livro da autora: “Dix-Sept”.

A escritora francesa Colombe Schneck, que finalmente tem livro lançado no Brasil (Relicário/Divulgação)
A escritora francesa Colombe Schneck, que finalmente tem livro lançado no Brasil (Relicário/Divulgação)

Passados oito anos do lançamento na França, o livro chega agora às  prateleiras brasileiras por meio da editora mineira Relicário. Assim, “Dezessete Anos” já pode ser encomendado virtualmente ou adquirido nas boas livrarias da cidade.  

Silêncio

Mas o que fez a Colombe Schneck tomar a decisão de não só voltar a este assunto tão doloroso, quanto compartilhá-lo com leitores? A resposta, na verdade, passa por um nome muito preciso: o da também escritora e francesa Annie Ernaux. Quem acompanha a trajetória do Nobel 2022 certamente vai matar fácil a charada. É que, em 1999, Ernaux escreveu “O Acontecimento”, livro autobiográfico no qual narrava o aborto praticado em 1963, quando ela tinha 23 anos.

A capa da edição brasileira do livro de Colombe: publicação leva a chancela da Editora Relicário (Relicário/Divulgação)

Foi um impacto para Colombe. “Senti como se Annie Ernaux se dirigisse a mim”, diz a autora, logo no início do livro “Dezessete”, referindo-se, especificamente, a uma fala da colega e conterrânea. Nela, Ernaux analisava sobre o silêncio e o constrangimento que mesmo nos dias atuais (embora hoje o aborto, na França, seja legalizado) pairam em torno do tema. “Uma imensa solidão envolve as mulheres que abortam”, disse a Nobel de Literatura ao jornal “L’Humanité”.

No meio do caminho, uma gravidez

E, foi assim que, certamente após alguns debates internos, Colombe decidiu contar a própria história. Meandros de um episódio que, aliás, como ela mesma afirma, marca a passagem para a vida adulta da até então adolescente. Naquele 1984, Colombe se reconhecia como uma garota audaz, livre, moderna e antenada. Uma adolescente que, vejam só, leu “Emmanuelle” (romance erótico de Emmanuelle Arsan) e “A História d’O” (de Anne Cécile Desclos). Na época, Colombe dizia que dava as cartas. “Escolho, decido, nomeio. Tudo é tão fácil”, escreve. A luta das feministas, para Colombe, parecia já estar concluída.

O atraso na menstruação dá as primeiras pistas do que depois é confirmado pelo ginecologista. Constatada a gravidez, não há espaço para dúvidas na mente de Colombe. Não havia alternativa. “Manter a gravidez significaria renunciar. Quero fazer ciência política, ser jornalista no Le Monde, apresentar o jornal das 20 horas, ser debatedora no rádio, ler livros proibidos, casar e ter filhos o mais tarde possível”, escreve, no livro. A vida, claro, não segue scripts, e nem tudo que Colombe idealizou ali, naquele momento, se concretizou.

Ausência

A vida seguiu, Colombe teve dois filhos. Mas ainda hoje traz, dentro de si, uma ausência, que, lembra ela, nas páginas finais do livro, a acompanha há nada menos que 30 anos. Bem, agora (pontuando que o livro foi lançado originalmente em 2015, mais). Por intermédio da assessoria de imprensa da Relicário, a reportagem do Culturadoria conversou com Colombe, por e-mail, sobre este que corresponde ao lançamento do primeiro livro dela no Brasil.

Confira, a seguir, a entrevista.

“O Acontecimento”

Qual foi o seu primeiro contato com “O Acontecimento”, obra de Ernaux? Alguma passagem em especial a comoveu mais?

Quando comecei a ler Annie Ernaux, devia ter uns 18 anos. Imediatamente, ela me pareceu familiar, apesar de eu ter nascido em Paris numa família relativamente privilegiada (meus pais eram médicos), enquanto ela escrevia sobre a classe social dela, dos trabalhadores. Li “O Acontecimento” quando o livro foi lançado na França, em 2000, e, ao fim, anotei a seguinte frase: “Acabei de colocar em palavras o que me parece ser uma experiência humana total, de vida e de morte, de tempo, da moralidade e do proibido, da lei. Uma experiência vivida de uma ponta a outra através do corpo”.

Quando leio este texto, era casada, mãe de um filho. E escrever, naquele momento, me parecia uma ocupação inacessível.  Mas, ao ler este texto, entendo que o que vivi, o aborto que fiz aos 17 anos, foi “uma experiência humana total de vida e morte”. Mas levei  mais 15 anos para de fato escrever o que aconteceu comigo (referindo-se ao fato de ter lido o livro de Annie em 2000 e de ter publicado “Dezessete Anos” em 2015).

Literatura e aborto

As recentes decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos e as ameaças contra os direitos das mulheres em diferentes partes do mundo ilustram a importância e a atualidade da discussão sobre os direitos reprodutivos. De que maneira a literatura – e as manifestações culturais de forma geral – podem jogar luz nesse tema?

Penso que a literatura é a ferramenta que penetra mais profundamente no coração das mulheres e dos homens. Mais do que um discurso, uma manifestação, ela conecta, sem intermediários, e de forma transparente, o autor e o leitor. Um livro, um filme, uma música ficam conosco, assim como o amor. Não podemos controlar a forma como eles se instalam em nós e nos obrigam a pensar neles e a agir.

Linguagem

Em “O Acontecimento”, Ernaux fala da opção por utilizar uma linguagem mais descritiva no livro, justamente para “não obscurecer a realidade das mulheres que passaram por essa experiência”.  O que você pensou sobre a linguagem que empregaria para contar a história que aconteceu contigo?

Sim, isso é muito importante. Só contam os fatos, só os fatos não saem de moda, não podem ser transformados, muito mais que uma análise psicológica ou um comentário. Ao escrever, busco usar apenas palavras úteis. E que minha escrita seja a mais clara e sóbria possível, que avance diretamente.

Decisão

No Brasil, cerca de 800 mil mulheres praticam aborto todos os anos. Dessas, 200 mil acabam recorrendo ao SUS para tratar sequelas de procedimentos mal feitos. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a situação pode ser ainda mais alarmante: o número de abortos pode ultrapassar um milhão de mulheres. O mais chocante: o aborto é o quinto maior causador de mortes maternas no Brasil. Neste cenário, o que diria às brasileiras que, neste momento, estão enfrentando o drama de uma gravidez não desejada (lembrando, ainda, que há muitos casos de gravidez decorrente de estupros, inclusive praticados por pessoas da família da menina, que, na cabeça dos mais conservadores, mesmo assim não devem ser interrompidos)….  

Diria a elas que se trata dos seus corpos, da privacidade delas, de quem são. Assim, que ninguém pode tomar uma decisão por elas. Nem um padre, nem um político, nem qualquer homem com poder. Somente elas têm poder sobre o próprio útero.

Direitos

Bem, na França, também temos um avanço da extrema-direita… Teme que algumas conquistas das mulheres possam ser revogadas caso essa ala chegue ao poder ou mesmo que as ideias por ela defendidas possam arregimentar mais adeptos? O que é possível fazer para impedir recuos?

Como disse Annie Ernaux, e é por isso que escrevi “Dezessete Anos”, é preciso dizer sem vergonha, sem constrangimento: “Fiz um aborto”. Uma em cada duas mulheres aborta em França e permanece em silêncio, porque este aborto é considerado um erro, um fracasso. Estar grávida não é motivo de culpa, é da natureza do nosso corpo, e não estamos sozinhas: em geral, um homem também agiu… Devemos reverter essa ideia de culpa e proclamar: “Eu fiz um aborto”.

Ler, escrever

Li uma entrevista que você concedeu ao Madame Le Figaro, no qual diz: “Escrevo porque é através da escrita que chegamos a uma forma de verdade. Capitulamos, ordenamos, corrigimos, arrumamos as coisas, há uma espécie de artifício, e ainda assim, é só por meio da escrita que podemos chegar à realidade”. Fiquei particularmente impressionada com esta frase, mas, como ela foi dita a outro veículo, óbvio, não vou copiá-la. No entanto, gostaria que me falasse sobre o poder da escrita em sua vida….

Você pode retirar isso! (risos) Mas, sério, fui leitora durante muito tempo, antes de me tornar escritora. Quando criança, a ficção permitiu-me dar um sentido à realidade. Uma ordem, uma lógica, uma explicação. Eu estava procurando por tudo isso nos livros. Por exemplo, quando criança, eu lia a lista telefônica: nomes, endereços, números de telefone. Hoje, entendo que minha obsessão por identidades estava ligada à história da minha família e aos muitos desaparecidos dela, dos quais não se falava. Ler e escrever são, para mim, uma atividade da mesma ordem. Portanto, permitem-me compreender que, na maioria das vezes, a vida não tem sentido, ordem, lógica. (Tal qual) que não sou a única pessoa em desordem. Nesse sentido, ler e escrever são um grande consolo.

*Com Carolina Cassese (Especial para o Culturadoria)

Serviço

“Dezessete Anos”
Colombe Schneck (Tradução: Isadora Pontes e Laura Campos)
Editora Relicário, 80 páginas, R$ 52,90.

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