Quando a produtora e diretora Joana Mariani elaborou o planejamento de distribuição do documentário Aeroporto Central, dirigido por Karim Aïnouz, escolheu o caminho tradicional. Assim, o longa que acompanha o isolamento de imigrantes no extinto Aeroporto de Tempelhof, em Berlim, estreou primeiro no mais famoso festival de lá, a Berlinale. Saiu com o prêmio da Anistia Internacional.
A seguir, foi exibido nas telas de mais de 30 eventos internacionais. Sempre com ótima repercussão. Mas, na hora da estreia comercial, ou seja, o momento de chegar às telas de todo o país, a pandemia estourou. Foi aí que tudo mudou.
Aeroporto Central estreou direto no VOD, ou seja, Vídeo On Demand, como também é chamado o sistema de aluguel ou compra de filmes online. Assim como aconteceu com a estratégia traçada para o longa de Karim, muitas produções têm feito escolha parecida. Indefinição sobre quando a ida ao cinema será liberada, estimula mudança de rotas. É somente mais uma das inúmeras transformações estimuladas pela Covid-19.
Aceleração
“A pandemia jogou gasolina na fogueira. Agora a troca vai ser mais rápida”, acredita Joana Mariani, da Mar Filmes, responsável pela distribuição de Aeroporto Central. Segundo ela, as conversas sobre as janelas de exibição e, inclusive, o protagonismo das plataformas de VOD já aparecem há, pelo menos, cinco anos no mercado. O isolamento social acabou encurtando o tempo que produtoras e distribuidores tinham para entender a nova lógica.
O primeiro lançamento comercial feito pela empresa de Joana foi O Cheiro do Ralo, de Heitor Dhalia, em 2007. Ela lembra que, naquela época, o percurso das produções era bem mais extenso. Depois do circuito de festivais, do lançamento comercial, havia o tempo de aluguel em locadoras de vídeo tradicionais, seguido das vendas de DVD e somente depois era exibido na televisão. “Você fazia dinheiro com DVD. Agora isso não existe mais”, afirma.
Outras bases com o VOD
Os novos sistemas, segundo Joana Mariane, ainda estão em construção. “Está começando a se disseminar uma cultura”, diz. Sim, e ela não é positiva nem negativa. É diferente e, como tal, gera angústia. Ainda não é seguro afirmar o quanto as novas gerações estão dispostas a pagar por aluguel de filmes, por exemplo. Será que preferem pagar as mensalidades dos serviços de streaming?
É justamente essa dúvida que talvez não tenha provocado uma enxurrada de estreias direto em VOD. Por enquanto, a lista de adiamentos é extensa. Na Vitrine filmes, por exemplo, a estreia do documentário Babenco: alguém tem que ouvir o coração e dizer parou, de Bárbara Paz, ainda não tem data. Entraria no circuito comercial no dia 8 de abril.
Já Fim de festa, com direção de Hilton Lacerda e Irandhir Santos no elenco, teve sua estreia no VOD antecipada. O longa chegou a ocupar as salas de cinema mas o lançamento foi interrompido pela pandemia. No dia 1 de maio estará disponível no Net NOW, Vivo Play, Oi Play, iTunes, Youtube e Google Play com os valores do aluguel variando entre R$ 6,90 e R$ 14,90.
É o mesmo caso do drama Meio irmão, da diretora estreante Eliane Coster. O longa, eleito pelo público o Melhor Filme Brasileiro de Ficção na 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, também estava prestes a entrar nos cinemas e precisou mudar de rota. O lançamento, então, foi feito nas plataformas digitais iTunes, Google Play, Vivo Play e Looke.
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Global e local
Aeroporto Central também está disponível no Now, Vivo Play, Oi Play, iTunes, Google+, Filme Filme e Looke. Para Joana Mariani, a estreia do longa em VOD também amplia o alcance da obra. Uma coisa é entrar nos cinemas de dez capitais. A outra é chegar, ao mesmo tempo, a cidades de todos os tamanhos no mundo. “A partir do momento em que temos uma pandemia, a sala de cinema é a sala das pessoas. Tenho que olhar para esse lugar”.
Joana acredita que o hábito de consumir “cinema” em diferentes dispositivos é uma questão de geração. Ela vê as mudanças com bons olhos. Por exemplo, ao mesmo tempo em que Aeroporto Central pode ser visto na Europa, a estreia “global” possibilita que seja consumido no interior de Minas, em um cineclube de uma cidade minúscula. “Sou um pouco contra o saudosismo”, diz.
Baixo Centro
A expectativa do diretor mineiro Samuel Marotta era grande. Baixo Centro, o filme dirigido por ele junto com Ewerton Belico e vencedor da Mostra Aurora em Tiradentes em 2018, também estava com toda a estratégia de lançamento planejada pela distribuidora Olhar de Cinema, de Curitiba. De repente, ele e toda a equipe se vê discutindo novos caminhos, entre eles, o VOD.
“Você faz cinema e quer o impacto da sala”, confessa ele, que imaginava uma carreira normal para o longa. Ou seja, somente depois da estreia no cinema teria o VOD como um segmento natural. O plano, no entanto, terá que ser outro. Acontece que Baixo Centro foi produzido com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual, administrado pela Agência Nacional do Cinema. Sendo assim, o edital tem como obrigatoriedade a estreia em salas de cinema. E agora?
Obrigatoriedade
Resta o adiamento mesmo. Depois de uma bem sucedida carreira por festivais, Pacarrete é um dos longas nacionais que entra em uma interminável fila por uma nova data de estreia. O lançamento estava inicialmente previsto para 30 de abril em 50 salas brasileiras. “Como os cinemas devem ser a última parte economia a voltar, a primeira que fecha e última que abre. Imagino que devemos lançar apenas no segundo semestre”, informa o diretor Allan Deberton.
Assim como Baixo Centro, Pacarrete também precisa obrigatoriamente estrear no circuito comercial. “Está todo mundo atado”, conclui Deberton. Apesar disso, acha importante o esforço de manter a experiência de cinema. “Não podemos enforcar o cinema. Existe há mais de 100 anos e já superou outras grandes doenças”.
Novo paradigma com VOD
“As produtoras estão insistindo com a Ancine, mandando e-mail para tentar alterar essa obrigatoriedade. O que está acontecendo abre outro paradigma. Temos que pensar outras formas de distribuição”, conta Marotta. Mesmo que alteração nas regras do edital demore, o diretor já começa a trabalhar com outras possibilidades para fazer com que Baixo Centro chegue até o espectador.
A previsão, se tudo correr como o planejado, é que o processo de estreia ainda dure cerca de seis meses. Dessa maneira, até lá, será preciso preparar o filme para a exibição nos sistemas de streaming. “Não chamaria isso de resolver. Os filmes são pensados para as salas de cinema, mas resolve sim em alguma medida, pois será exibido, nem que seja na televisão”.
Linguagem
Grande defensor da linguagem cinematográfica para a sala grande, Samuel Marotta acredita que se o movimento de lançamentos diretos no VOD virar uma moda, será preciso criar um novo modo de fazer cinema. Segundo ele, assim como foi na ocasião da mudança da película para o digital, a troca da sala grande para a telinha também tende a abrir novas possibilidades. “A partir do momento em que a sala de cinema deixa de ser uma questão, os filmes acabam mudando um pouco”.