
As estátuas de Carolina Maria de Jesus e Lélia Gonzalez, situadas no Parque Municipal, nas proximidades do Teatro Francisco Nunes (Foto: Patrícia Cassese)
Idealizadas por Etiene Martins, as estátuas de Lélia de Almeida Gonzalez e Carolina Maria de Jesus podem ser vistas no Parque Municipal
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Foi no último dia 30 de junho que a capital mineira vivenciou um marco histórico: a inauguração das estátuas que homenageiam duas figuras exponenciais da cena literária brasileira (com irradiação mundo afora): as mineiras Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977) e Lélia de Almeida Gonzalez (1935 – 1994). Situadas no Parque Municipal Américo Renné Giannetti, no entorno do Teatro Francisco Nunes, as esculturas integram o Circuito Literário de Belo Horizonte. Trata-se de uma homenagem dos movimentos de mulheres negras de Minas Gerais a essas duas mulheres de legado imensurável. Aliás, no local, o visitante também pode acessar um QR Code, por meio do qual será conduzido a um rol de informações sobre a vida e trajetória de ambas.
A iniciativa é fruto de um projeto arquitetado pela jornalista (mestra e doutoranda em comunicação e cultura) Etiene Martins, que, conta, travou contato com a potência de Carolina e Lélia por meio da leitura dos livros “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada” e “Racismo por Omissão”, respectivamente. Cooptada pela força do que leu, a partir dali, resolveu mergulhar mais fundo na produção das mineiras, bem como esquadrinhou biografias e entrevistas por elas concedidas. Tudo isso se juntou a um outro campo de pesquisas da mineira.
Memória
Ao Culturadoria, Etiene revela que desde 2012 vem pesquisando relações raciais e de gênero. “E desde então estou atenta ao apagamento, ao epistemicídio e à subjugação a que as mulheres negras são submetidas. No entanto, sempre tive um foco no problema e o outro nas possibilidades que haviam disponíveis para mudar essa realidade”, ressalta. “Ou seja, pensando em uma alternativa para reverter este quadro (apagamento, epistemicídio e subjugação), e, assim, de alguma forma, inseri-las (não só Carolina e Lélia, como outras mulheres) ainda mais na memória popular”.
Etiene pontua que quanto mais estudava e se envolvia com o movimento negro, mais sentia a necessidade de tentar mudar alguma coisa. “Até que, no dia 26 de agosto de 2021, passei em frente à estátua da Mercedes Batista (bailarina e coreógrafa brasileira, a primeira negra a integrar o corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro) no Rio de Janeiro (no Largo São Francisco da Prainha). Naquela ocasião, eu não sabia quem era, mas o que me chamou atenção foi o fato de ser uma mulher negra. Fiquei curiosa e, de lá, já fui almoçar pesquisando, no celular, a história dela. Quando me dei conta da curiosidade que aquela estátua me causou, a ficha caiu. E imediatamente pensei: ‘É isso! Vou preservar a memória do povo preto da minha cidade através de estátuas'”.
O processo
Desse modo, Etiene Martins voltou para BH (por conta do doutorado, ela está morando no Rio de Janeiro) e, de pronto, deu início ao que chama de uma pesquisa exploratória, visando levantar quantas estátuas de pessoas negras havia na cidade. “Nesse breve levantamento, foi constatado que todas as estátuas da cidade são de pessoas brancas – e a maioria, de homens”. Em um segundo momento, ela se dedicou a uma pesquisa mais minuciosa até chegar aos nomes de Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus para dar início ao projeto.
Primeiros passos
Martelo batido quanto a quem seriam as primeiras homenageadas, Etiene começou a pesquisar qual seria o melhor local para receber as esculturas. “Levei em consideração a segurança, o livre acesso e a visibilidade, e, assim, me dei conta de que o lugar ideal era o Parque Municipal”. O próximo passo foi encontrar parcerias para executar o projeto, o que, lembra a jornalista e pesquisadora, em momento algum foi visto como uma tarefa das mais fáceis. Porém, em janeiro de 2023, apresentou a proposta à advogada Jozeli Rosa, que, por seu turno, atuava como chefe de gabinete da deputada Bella Gonçalves.

“Ela acolheu a minha idealização e, como assessora parlamentar, fez todos os procedimentos administrativos e técnicos junto à Secretaria de Cultura. A (deputada estadual) Bella Gonçalves acreditou no projeto e destinou uma emenda parlamentar que caiu na conta da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte em dezembro de 2023. A Secretaria de Cultura, por sua vez, contratou o artista que deu forma e corpo às estátuas de Carolina e Lélia, Léo Santana. Assim, no último dia 30 de julho, colocamos na rua as duas primeiras estátuas negras da capital mineira”, orgulha-se Etiene.

Léo Santana
Léo Santana teve autonomia para trabalhar na caracterização, a partir das pesquisas de detalhes referentes às características físicas de cada uma. “Até porque, ele tem uma longa trajetória nesse ofício, já eu, só sei apreciar”, brinca Etiene, que, na verdade, conheceu o artista neste processo. Como se sabe, foi Santana o responsável pelos protótipos das estátuas de escritores como Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Murilo Rubião, Roberto Drumond e Henriqueta Lisboa, dispersos pela capital mineira.

No entanto, neste processo, Etiene conta que teve, sim, a oportunidade de ver os croquis e, tal qual, fazer ponderações junto a Bella, a Jozeli e à família de Lélia, bem como junto a servidores da Secretaria Municipal de Cultura. “Durante o processo de produção, tive acesso às fotos e também fui até o local de trabalho do artista”. (abaixo, detalhes da estátua dedicada a Lélia Gonzalez)

Primeiras de muitas
O projeto, pois, se inicia maravilhosamente com a homenagem a essas duas mulheres gigantes, Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus, que, como já pontuado, deixaram um legado e uma herança singulares. Perguntada se há a possibilidade de estátuas homenageando outras escritoras, Etiene assente. “Há a possibilidade, sim! E estou trabalhando para isso, para preservar a memória e homenagear outras pessoas negras, tanto da literatura quanto de outras áreas também. Assim, a proposta é que essas duas esculturas sejam as primeiras de muitas. Neste momento, estou novamente me debruçando em pesquisas para acertar nas escolhas, mas é um longo e difícil processo”, reconhece.
Na verdade, Etiene Martins compartilha o sonho de ver o dia no qual as pessoas possam ter real acesso à memória da cidade. “E que a negritude seja celebrada em todos os cantos dela. Portanto, que as pessoas saibam quem foi Chico Rei ou Barbara Gomes de Abreu Lima. Ou Rosa e Peregrina, bem como Valdete Cordeiro, Maria Ilma Ricardo, Dona Fininha, Djalma Corrêa, Marlene Silva… E que possamos celebrar em vida – e com muito destaque na nossa cidade – nomes como Conceição Evaristo, Maria Mazzarelo, Maurício Tizumba, Sérgio Pererê, Misael Avelino, Marcos Cardoso, Nilma Lino Gomes, Leda Maria Martins, Junia Bertolino… E tantas e tantos outros”.

Decolonizar a cidade
Em um espectro mais amplo, além do aspecto de homenagem e preservação da memória, bem como trazer à tona feitos que sofreram contínuas tentativas de apagamento, Etiene salienta que um objetivo precípuo do projeto é decolonizar a cidade. “Sim, eu sei que é ousado, mas temos que começar de algum lugar – e, daí, dar continuidade. Assim, é fundamental questionarmos o motivo de só pessoas brancas ‘merecerem’ estátuas e homenagens. É, mais importante ainda, colocar em evidência a diversidade, incluindo a população negra que também é protagonista na construção de Minas Gerais – tanto no trabalho braçal quanto no intelectual”.
