Em cartaz no Galpão Cine Horto, a ocupação da fotógrafa e artista Márcia Charnizon convidou mais de 30 mulheres para desnudarem corpo e alma
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Em exibição no Galpão Cine Horto, a ocupação “Caça às Palavras”, da fotógrafa e artista visual Márcia Charnizon, resulta de uma centelha que se acendeu após o impacto face a um fenômeno que testemunhou em 2020. “Foi durante uma conversa com pessoas envolvidas na campanha eleitoral da Cida Falabella (candidata ao cargo de vereadora, pelo PSOL), figura que tem um envolvimento super forte em políticas de defesa dos direitos das mulheres, especialmente no combate à violência de gênero”, relembra ela, ao Culturadoria. Na ocasião, uma das coisas que assustaram Márcia foi o número de mensagens misóginas e etaristas que Cida, tal como várias outras mulheres, recebiam, ininterruptamente.
Tão ou mais impactante que a quantidade era o teor de tais mensagens. O que a fez concluir que, se falar sobre feminicídio ou agressões físicas é, claro, sempre urgente e necessário, a violência sutil e cotidiana também precisa ser duramente combatida. Ela se refere a uma violência que, muitas vezes, chega na forma de micro agressões. “Aos poucos, essas opressões simbólicas moldam o imaginário da mulher como objeto. Os signos e narrativas que acompanham essa violência são gatilhos de opressão”, explana.
Marcas indeléveis
Desse modo, Márcia Charnizon partiu para perscrutar como mulheres acima de 50 anos (idade que tinha ao iniciar o projeto) vivenciavam isso, a percepção dessa violência nos dias atuais. E, assim, surgia o embrião de “Caça às Palavras”. Ao todo, a fotógrafa e artista reuniu 34 mulheres, voluntárias, que toparam expor as marcas deixadas em seus corpos sociais por conta de frases ouvidas ao longo de suas trajetórias.
Mais que uma escuta atenta e interessada, Márcia também ressalta que conversar com essas mulheres, bem como fotografá-las, acabou gerando um processo de (re) descobertas, que, por seu turno, provavelmente afetará outras tantas. “Cada fotografia é um capítulo de histórias nas quais muitas outras pessoas se reconhecem em discursos machistas, racistas, etaristas e misóginos”, entende ela.
O início
Na verdade, “Caça às Palavras” começou com um autorretrato. Isso, para que Márcia pudesse entender o processo “desde a dinâmica até o resultado visual”. “Ou seja, ter uma ideia concreta da imagem ao convidar as mulheres facilitou que elas aceitassem participar do projeto. De início, fotografei a Cida Falabella, que, por sua vez, trouxe duas amigas. E, a partir daí, a iniciativa ganhou repercussão entre amigas, bem como também junto a pessoas que eu não conhecia, de territórios e realidades diversas”.
O Culturadoria esteve no Galpão Cine Horto, conferiu o trabalho e, assim, partiu para enviar uma série de perguntas à artista. Confira!
Processo
Márcia Charnizon conta que seus trabalhos sempre se constróem num espaço de intimidade com quem fotografa. “Em um projeto como esse, ampliar a diversidade foi possível ao contar com o que chamo de ‘pessoas-ponte’. Ou seja, aquelas que conhecem alguém, que conhece outra pessoa.. E que, desse modo, ajudam a ‘vender’ a ideia da iniciativa. Elas falam algo como: ‘Tem um projeto maravilhoso, de uma fotógrafa incrível, e você precisa participar!’ Isso abre portas para chegar a mulheres que talvez, de outra forma, eu não encontrasse diretamente. Ou que não conseguiria acessar”.
Território de intimidade
As fotos foram feitas no quarto da casa da artista. Um espaço que ela entende como um território de intimidade. Nele, cada mulher se despia a seu modo. Na verdade, a nudez não era uma exigência. Assim, as que não se sentiam à vontade usavam uma camisola fina branca. No entanto, havia um denominador comum: cada uma levou uma frase violenta que ouviu e que marcou a sua trajetória. “Assim, conversávamos sobre essas palavras, sobre as sensações que deixaram no corpo”.
Na sequência, Márcia perguntava o que de fato poderia aparecer na imagem do corpo fotografado. “E, juntas, criávamos a pose, a partir da distribuição das palavras na tela de caça -palavras e com a minha direção nos movimentos, nas expressões”. Essas palavras se transformaram em uma projeção de caça-palavras sobre os corpos, propiciando, assim, uma interação visual com cada uma das fotografadas.
Determinação, força e coragem
A nudez, posiciona Márcia, não é, de forma alguma, um recurso usado para objetificar, mas, sim, para mostrar o corpo social marcado pela violência simbólica. “Desse modo, esses retratos foram construídos colaborativamente, e sem reforçar a imagem de uma mulher oprimida ou machucada. Pelo contrário, cada mulher encara a câmera com determinação, com a força de quem conhece e carrega a própria trajetória”, situa.
Desigualdades enraizadas
Perguntada sobre momentos marcantes na trajetória desse projeto, ela diz que foram tantos que seria tarefa hercúlea apontar algum. “Mas, agora, me lembrei de uma situação que talvez ilustre a diversidade da violência simbólica que atinge as mulheres. Lado a lado, estavam duas mulheres, cada uma com sua experiência. Uma mulher branca ouve repetidamente a frase ‘não gosto de fechar negócio com mulher’. Já a outra, uma mulher negra periférica, ouviu, do próprio pai, a frase: ‘Namoro ou estudo – as duas coisas, não pode’.”
Essa última frase, comenta Márcia, teve um impacto profundo na vida desta mulher, que sequer teve a oportunidade de estudar. “Esse contraste evidencia como mulheres negras (e indígenas) são, de longe, as mais afetadas por esse tipo de violência. O que reflete as desigualdades de gênero, classe e raça profundamente enraizadas na nossa sociedade”.
Retorno
Por fim, perguntada como está a interação do público com a ocupação, ela se anima. “Está bem interessante, pois as pessoas podem escrever, na parede, frases de violência que elas próprias experienciaram. E, nessa dinâmica, surgem frases nas quais outras pessoas também se reconhecem. E, daí, se dão conta de uma violência que por vezes é invisibilizada e, infelizmente, normalizada”.
Em tempo: O trabalho “Caça às Palavras”, de Márcia Charnizon, integra a Coleção de Fotografia Contemporânea da Bibliothèque Nationale de France (BnF)
Serviço
Ocupação “Caça às Palavras”, por Márcia Charnizon
Quando. Até 30 de dezembro
Onde. Galeria Corredor Rômulo Bruzzi da Galpão Cine Horto
Quanto. Entrada é gratuita