
O olhar amedrontado de Jotàt norteia o filme "A Flor do Buriti" (Embaúba Filmes/Divulgação)
O belíssimo “A Flor do Buriti” mostra os dramas que assolam o cotidiano do povo Krahô, em situações que se replicam Brasil afora
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Já há algum tempo, Jotàt, um garota do povo Krahô, do norte do Tocantins, não dorme bem. Está inquieta, é assombrada por pensamentos ruins, muitos ligados aos cupés. A mãe, Ilda Patpro, preocupada com a garota, pede ajuda ao tio, Hyjnõ, que, em vários momentos de “A Flor do Buriti”, dá conselhos para que o espírito da menina, que, entende ele, saiu do corpo, retorne. Ao longo do filme de João Salaviza e Renée Nader Messora, o espectador entende o quão procedente é o medo da encantadora Jotàt.
Exibido em mais de 100 festivais ao redor do mundo e vencedor de 14 prêmios, entre eles o prêmio coletivo para melhor elenco na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes, “A Flor do Buriti” finalmente estreou no circuito brasileiro na última quinta-feira. Ou seja, já está acessível ao público belo-horizontino, em sessões no..
Ameaças cotidianas
O povo Krahô mostrado no filme mora em uma reserva que é constantemente invadida por pessoas interessadas em devastar a natureza, inclusive para roubar animais selvagens – no caso, o foco do filme recai para as araras – e, assim, vendê-lo para o tráfico. Em uma das cenas do filme, são os garotos que descobrem as estruturas em madeira que foram utilizadas para que tais homens alcançassem o ninho das araras, em meio às pedras.
Massacre
“A Flor do Buriti”, como dito no material de divulgação do belíssimo filme, atravessa os últimos 80 anos dos Krahô. Neste percurso, relata o massacre ocorrido em 1940, ocorrido a mando de dois fazendeiros da região, e no qual morreram dezenas de pessoas – incluindo crianças e mulheres, algumas delas grávidas. O curso do filme lembre o episódio não só por conta do relato oral, mas também por fotos – inclusa, aí, a do representante da tribo que se arriscou a se aproximar dos invasores para tentar pedir clemência. Debalde.

Marcha para Brasília
No filme, há também cenas em que fatos mais recentes (que o referido e absurdo massacre) são reavivados pela memória, como dos tempos em que grupos de crianças iam com um professor conhecer o território Krahô. Em um grupo, por exemplo, alguns Krahô se lembram de ficarem meio estupefatos de os estudantes quererem tocá-los, como a tentar saber se eram feitos da mesma matéria, indígenas e cupés. O brutal desconhecimento dos brasileiros quanto aos povos originários também fica patente em um episódio envolvendo Patpro.

Trata-se de um momento no qual ela está a caminho de Brasília, ainda sob a égide do governo de Jair Bolsonaro, e, em uma parada, sai do ônibus para comprar abacaxi gelado. O vendedor logo pergunta se ela é Xerente, e, logo depois, já degustando a fruta em uma mesa, Patpro comenta, com o tio, o episódio. E este retruca lembrando o quão os cupés veem os povos originários como uma massa indiferenciada, mesmo estando ali, geograficamente tão perto de tantos.
União
Tal qual os Krahôs, vários outros povos se dirigem a Brasília para um grande ato contra as arbitrariedades cometidas no Brasil contra os originários. A lista é grande. Inclui das queimadas à contaminação das águas dos rios pelo mercúrio, passando pela violência diretamente aplicada a meninas indígenas. Há a citação de Daiane Griá Sales e Raissa da Silva Cabreira. Patpro parte para Brasília preocupada em deixar a filha, que, como dito, está inquieta e aterrorizada, mas sabe que sua presença, na marcha, é necessária.

Não só. Ela parte também com vistas a esquadrinhar um recorte particular da luta dos povos originários em um governo marcado por retrocessos. Assim, Patpro sabe a importância de se unir a outras mulheres, de outros povos, para o compartilhamento de análises e estratégias de luta. Aguerrida, Patpro é admirável, não menos. Em Brasília, enfrenta frio, dorme no chão da barraca, mas sabe o quanto estar ali é importante.
Sabedoria
Ao Buriti do título, o povo Krahô pede sabedoria e, do mesmo modo, que consiga proteção contra as doenças trazidos pelos brancos, bem como outras mazelas, algumas das quais listadas aqui.
Impossível sair da sala escura sem se afetar pelo relato dos assombros, medos e pavores que, na verdade, sabemos muito bem, se replicam nas áreas em que os demais povos originários desde sempre habitam. Ou seja, para além dos Krahô. Impossível não se revoltar com tanta ganância e crueldade por parte do branco. Por meio das imagens captadas (mesmo que algumas nos surjam já com a mediação da equipe e suas câmeras), é possível entender melhor, mais “de perto”, o que geralmente acompanhamos apenas por noticiários. E, principalmente, entender o olhar de Jotàt, torcendo para que ela, ao se tornar adulta, encontre um mundo menos hostil e sangrento.
Confira, a seguir, o trailer
Serviço
“A Flor do Buriti” – Embaúba Filmes
Onde (*). Em cartaz no Una Cine Belas Artes (Rua Gonçalves Dias, 1.581), às 18h10
e no Centro Cultural Unimed-BH Minas (Rua da Bahia, 2.244, Lourdes), às 19h50
*O Culturadoria lembra que a programação dos cinemas de todo o Brasil se altera a cada quinta-feira, bem como, eventualmente, os cinemas podem alterar horários em função de exibições especiais. Portanto, para que o espectador não “perca a viagem”, recomendamos entrar nos sites dos próprios cinemas para conferir a programação do dia.