
Brinco de Ouro. Foto: Ester Teixeira
Lá da Favelinha estreia o espetáculo de funk “Brinco de Ouro” no Palácio das Artes, em 31 de outubro
Por Helena Tomaz | Assistente de Conteúdo
Quem acompanha de perto a cena cultural belo-horizontina certamente já ouviu falar do Lá da Favelinha. Fundado em 2015 pelo artista Kdu dos Anjos, o centro cultural fica localizado na Vila Novo São Lucas e atende os moradores do Aglomerado da Serra. Ao longo dos seis anos de existência, a iniciativa se ampliou e ganhou novas frentes. É o caso do Favelinha Dance, núcleo dedicado à dança.
No dia 31 de outubro, o Lá da Favelinha dá mais um importante passo para a própria história e para a cultura da cidade, como destaca Kdu em entrevista ao Culturadoria. Isso porque, na data, o Favelinha Dance sobe ao palco do Palácio das Artes, no coração da cidade, para apresentar o primeiro espetáculo de funk no icônico espaço.
No bate-papo, Kdu explica, ainda, a história por trás do nome do espetáculo, que remete aos brincos usados por pessoas escravizadas líderes da capoeira em Minas Gerais. Dessa forma, o espetáculo também se propõe a traçar um paralelo entre as lutas periféricas da época e as atuais, evocando símbolos de poder e subversão. Confira, a seguir, a entrevista completa de Kdu dos Anjos ao Culturadoria:
Antes de falarmos propriamente sobre o espetáculo, queria que explicasse como funciona o Lá da Favelinha hoje em dia, já que o “Brinco de Ouro” é fruto do Favelinha Dance, certo?
Hoje em dia, o Centro Cultural Lá da Favelinha continua com as oficinas semanais [que já eram ofertadas]. Esse ano, a gente está com algumas novidades incríveis: uma oficina de Libras e uma oficina de danças urbanas, para além do que a gente já fazia (a capoeira, o rap, o funk, o pré-Enem, bordado, teatro e por aí vai).
Especificamente as oficinas de Libras, de danças do funk e a de danças urbanas são frutos do Pontos de Cultura [programa governamental de incentivo à cultura]. A gente propôs para o Pontos de Cultura uma incubadora de funk, que é o “Por Trás do Bailão”. De contrapartida a esse projeto maravilhoso, a gente tinha que entregar só um vídeo, fruto desse ensaio, já que os dançarinos passam a ter uma bolsa (que é quase uma ajuda de custo mesmo) para garantir que venham ensaiar – e não só quando tem um show ou um espetáculo, que o cachê já paga. A gente ia apresentar o [vídeo como] fruto desses ensaios, mas, megalomaníacos que somos (risos), a gente montou um espetáculo, que é o Brinco de Ouro!
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Em uma dessas, o nosso diretor artístico maravilhoso, que é o Léo Garcia – que fez parte do balé tradicional do Palácio das Artes – fala: “Poxa, a gente podia estrear um espetáculo de funk no Palácio das Artes”. Eu gostei da ideia, fiz umas três ou quatro ligações e conseguimos uma data lá, para fazer essa estreia.
É uma estreia que vejo como um marco na história da cidade, da história da cultura do funk brasileira. Acho que é levar para um patamar que, querendo ou não, mesmo o palácio sendo super parceiro e abrindo as portas para nós, ainda é um palco ‘inalcançável’ para a periferia. Quase elitista. E a gente vai entrar com o nosso funk.
A classificação etária é 14 anos, assim, menor de 14 anos só entra acompanhado dos pais, mas a gente traz o funk original da favela. Não vai ter cena de violência, não vai ter cena de sexo explícito, a censura pegou ali, nos 14 anos.
Você já trabalhava com o Léo?
Já. O Léo Garcia é um bailarino incrível que, além do jazz, do ballet, do contemporâneo, é um grande influente das danças de raízes africanas, danças de terreiro mesmo. Ele é um cara que pesquisa muito e que trabalha com o funk. Foi um dos caras que, no próprio Rio de Janeiro, que é o berço do funk, conseguiu fazer algumas estruturas coreográficas, de coreografar passinho, de coreografar outras danças que existem dentro do funk. Ele trabalha nas duas principais companhias/incubadoras de funk do Brasil, que são o Heavy Baile e o Studio Funk.
Então, ele deu muitas aulas para a gente durante a pandemia, mas mesmo antes disso ele já era parceiro, dançou em uma noite de gala na qual a gente arrecadou dinheiro para ir para a Europa em 2019. Sempre trabalhou muito com a gente.
E é importante falar desta direção coreográfica – porque todo mundo cria coreografia aqui no grupo – porque o grupo é formado por seis bailarinos incríveis e cada um traz uma referência de dança das suas raízes, das suas origens, cada um é diferente nesse aspecto. Então, era aquela coisa: “Muito cacique para pouco indígena!”. Assim, ele vem com uma liderança muito importante e conquistou um respeito muito grande por parte do grupo. Está bem interessante esse trabalho com o Léo Garcia.

Como foi o processo criativo de pensar um espetáculo de funk para o palco, para o teatro? Porque, de certa forma, é uma transposição, não é? Como foi pensar isso em equipe?
Essa pergunta é muito interessante, porque, de fato, nós estávamos acostumados a fazer showcases, shows-apresentações, para eventos corporativos, festas de 15 anos, formaturas. E é completamente diferente nos apresentarmos em um baile de formatura e apresentarmos em um palco – no caso, já estreando no do Palácio das Artes.
A pesquisa começa a partir de a gente querer contar a história do funk. Depois a gente cai na real de que estamos dentro das montanhas, e aqui já tem a identidade do funk mineiro. Inicialmente, o espetáculo ia se chamar “BH é Nóis”, até que, nessa pesquisa, tentando entender a origem do funk, a gente entende que ele é quase um primo do samba, e que o funk também traz muito da malandragem, da rua.
Aí a gente foi beber na fonte da capoeira e do escravagismo no Brasil e descobre, através de um capoeirista aqui, da Favelinha, que a capoeira era proibida. Eles [capoeiristas escravizados do passado] começaram a se encontrar ‘na calada’. Os mais respeitados, principalmente em Ouro Preto, usavam uma argolinha de ouro [na orelha] para mostrar subversão, valentia. E a gente falou “Cara, isso é muito legal!”.
Em nenhum momento do espetáculo a gente usa objetos de ouro. É como se o corpo de baile, os dançarinos e os DJs fossem os brincos de ouro. Eles são essa representatividade da subversão, do não querer estar dentro de toda a exploração, que acontece não apenas com o minério de Minas Gerais, mas com as periferias. A gente se sente explorado. E assim nasce o nome “Brinco de Ouro”.
Então vocês já começaram o espetáculo pensando que ele seria para o palco do Palácio das Artes?
Não! A gente cria a cenografia e todos os elementos pensando em todos os palcos possíveis, inclusive na rua. Quando vem a oportunidade de fazer no Palácio das Artes, a gente dá essa ênfase em pensar, por exemplo, em uma luz tratada, digna de Palácio das Artes. A gente começa a pensar em elementos do próprio corpo: como coloquei antes, dançar em uma festa de formatura é uma coisa, dançar naquele palco é outra. Assim, o “Brinco de Ouro” é um espetáculo adaptável, ou seja, dá para fazer em teatro de bolso, na rua, em baile… Onde a gente for chamado!

Então, os planos são de continuar com o espetáculo em repertório?
Sim, continuar com o espetáculo! Inclusive, já vamos receber alguns olheiros do universo das danças – inclusive internacionais. Já tem papo de [apresentar) em 2024 na Europa, nos Estados Unidos… Mas vamos esperar a estreia primeiro, né?!
Você já falou um pouco sobre isso, mas o que significa, para você – pessoalmente e como gestor de todo esse projeto – se apresentar nesse espaço tão significativo para a cidade?
Acho que ter um espetáculo de funk no Palácio das Artes ultrapassa várias camadas sociais. No Lá da Favelinha, nós somos muito ligados à arquitetura, e o Palácio tem o projeto original de Oscar Niemeyer. (Nós ganhamos prêmios de arquitetura com a Favelinha, com a minha casa*).
Agora, vamos nos apresentar com o devido respeito que aquele espaço merece. Eu acho que aquele palco, aquele teatro, é uma entidade. Os maiores e melhores passaram por ali. Então, a gente entra com muito respeito, sabendo do tamanho da responsabilidade que é estar ali, mas, acima de tudo, com muito orgulho de ter conseguido colocar um espetáculo de funk em uma das casas da cultura de Minas Gerais, do Brasil e talvez até do mundo.
É muito orgulho, muito trabalho e muita dedicação. Nós estamos frenéticos nesses últimos dias. É um nascimento, é um bebê que está vindo para o mundo e que vai crescer, ficar bem forte, bonito, saudável, inteligente e valente! [Risos].
Por fim, o que quem for conferir o espetáculo vai encontrar?
É interessante as pessoas irem com a mente bem aberta. Coração, olhos e sentidos bem apurados. É um espetáculo interativo, emocionante.
Então, as pessoas podem ir preparadas para se emocionar bastante. E é muito subversivo, isso: pensar no funk, que tem todas essas mazelas, de violência urbana, e fazer algo que pretende emocionar as famílias. E não só as famílias dos bailarinos, mas todo mundo que for, vai conhecer esses bailarinos por trás das cortinas.
Tem muito amor, tem muita sarração, tem muita polêmica também. A gente traz alguns símbolos religiosos, passando de Jesus a Exu. As pessoas podem ir com coração e mente abertos, porque vão ser muitas emoções.
* Conhecida como Casa no Pomar do Cafezal, a residência de Kdu dos Anjos, projetada pelo arquiteto Fernando Maculan, foi a vencedora na categoria Casa do Ano pelo projeto ArchDaily, de amplitude internacional, além de ter sido um dos vencedores do 8º Premio de Arquitetura do Instituto Tomie Ohtake, por exemplo.