“O Sequestro do Papa”, de Marco Bellocchio, traz a história verídica do rapto de um menino judeu pela Igreja Católica; filme estreia dia 18 de julho
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Se mesmo nos dias atuais, fatos reais – devidamente registrados por fotos, vídeos ou gravações de áudio – nos parecem surreais, o que dizer dos ocorridos no passado, quando o que hoje nos parece absurdo era normatizado? Bem, o episódio verídico que inspirou o filme italiano “O Sequestro do Papa” (“Rapito”), em cartaz na capital mineira, pertence a esta esfera. Parece inacreditável, mas, sim, aconteceu. Assim, o cineasta Marco Bellocchio foi buscar inspiração na história do menino judeu Edgardo Mortara, que, aos seis anos, foi subitamente extraído da casa de sua família, em Bolonha, em 1858, por ordem do Papa Pio IX. E, assim, convertido oficialmente ao cristianismo. À época, vale lembrar, a citada cidade italiana vivia sob a égide dos estados pontifícios (lembrando que, naquele período, o papa gozava do poder de um rei).
O motivo do rapto – palavra que dá o título original (“Rapito”) – mostrado no filme de Bellocchio é dos mais insólitos. É que, sem o conhecimento dos pais, Edgardo recebeu o batismo por parte de Annina, uma mulher que, por um certo período, trabalhou na casa dos Mortara. O motivo: quando o menino era ainda bebê, ficou gravemente enfermo. Daí, a criada, com medo que morresse sem receber o batismo – e, assim, fosse para o limbo, segundo as crenças que ela professava – submeteu-o ao ritual. Ocorre que, à época, vigorava uma lei que proibia não-católicos de criar crianças católicas. Portanto, a realização do sacramento – mesmo que, como frisado, sem a anuência dos pais (judeus) – já justificaria a retirada abrupta e violenta do garoto de casa pelos Estados Papais.
O rapto
No caso, assim que as autoridades católicas – tendo, à frente, o padre Feletti (Fabrizio Gifuni), inquisidor – batem à porta da família, já à noite, o estupor invade a mãe do garoto, Marianna Mortara (a belíssima Barbara Ronchi), que, claro, não tem a mínima ideia do que está acontecendo. Ao saber do motivo que levou aqueles homens a estarem ali (o, até então, desconhecido batismo), bem como do objetivo precípuo da visita (levar o garoto), os pais, claro, entram em desespero. Mas não há nada a fazer. Um “consolo” (muito entre aspas) aos dois vem da informação de que o garoto permaneceria em Bolonha, e, assim, os demais membros da família poderiam eventualmente visitá-lo. Ao pai, Salomone, ou Momolo (no filme de Bellocchio, interpretado por Fausto Russo Alesi), os inquisidores, cínicos que só, inclusive pedem para que ele separe algumas mudas de roupas para Edgardo.
No entanto, exatamente quando vai entregar o que lhe foi pedido, Momolo recebe a informação de que, na verdade, o menino já não está mais em Bolonha: foi levado a Roma. O fofo Enea Sala foi o ator incumbido de interpretar Edgardo nesta etapa inicial do longa de Bellocchio, e o faz com muita graça – e absoluta competência. Por meio de suas feições, vemos Edgardo inclusive demonstrar um certo conformismo e, tal qual, se adaptar à nova vida, mesmo com saudades da mãe. Nem demora, o garoto já manifesta interesse em aprender os rituais católicos.
Batalha
A família, porém, segue lutando para recuperar a guarda da criança, por meio de uma série de expedientes, como petições. O caso ganha repercussão não só na Itália, mas até nos Estados Unidos. No material enviado pela Pandora Filmes, distribuidora do filme no Brasil, há uma fala de Marco Bellocchio. Nela estão tanto os motivos que o fizeram se interessar por esta história, bem como um importante aparte. “Naturalmente, o que Edgardo viveu nunca poderia acontecer hoje, numa época de diálogo aberto e de um papa de mente extremamente aberta (referindo-se a Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco). Naquela época, porém, havia de fato a sensação de que a fé católica não podia ser abalada”.
O diretor ainda frisa que o filme não busca colocar um lado contra o outro. “O destino deste homem falou comigo e me inspirou. A história de Edgardo me encheu de sentimento e tensão. E essas emoções abriram o caminho para moldar o filme. Minha empatia vai claramente para a criança que sofreu um ato de extrema violência”, situou Bellocchio.
Trajetória
O roteiro do filme, na verdade, teve, como calço, livros como “O Caso Mortara” (“Il Caso Mortara”), de Daniele Scalise. Bellocchio também assina o roteiro, junto a Susanna Nicchiarelli e Edoardo Albinati. O “Sequestro do Papa” estreou no Festival Internacional de Cannes 2023, na competição oficial, tendo passado também pelos Festival de Toronto e pelo de Nova York. Na própria Itália, a produção teve indicações a nada menos que 11 categorias ao David di Donatello, concedido pela Academia do Cinema Italiano. – entre elas, melhor filme, diretor e roteiro adaptado. Venceu nas categorias melhor figurino, maquiagem e cabelo.
Pilares históricos
Ainda segundo o material distribuído pela Pandora Filmes, Bellocchio pontuou que a ideia do filme sempre foi a de centrar em fatos estritamente históricos (documentados) antes de deixar a imaginação cobrir as lacunas do episódio. “Na verdade, sabemos muito pouco sobre a vida privada dos personagens, por exemplo. Assim, a estrutura do filme é sustentada por vários pilares históricos”. A saber: o sequestro em 1858, o julgamento em 1860 e a captura de Roma em 1870.
Sim, houve um julgamento. E o leitor interessado em saber pormenores não terá muito trabalho em encontrar as informações por meio de sites de pesquisas. De todo modo, não é incorrer em spoilers lembrar que Edgardo optou por permanecer católico. Isso, mesmo quando, já maior de idade, lhe foi dada a opção de escolher entre o judaísmo – e, assim, voltar ao seio da família – e o catolicismo. Ele faleceu aos 88 anos, em Liège (Bélgica), onde vivia em um mosteiro.
Ao fim e ao cabo, por meio do episódio, o filme de Bellocchio discute questões caras também aos tempos atuais, como a intolerância religiosa. Ou seja, uma religião se considerando superior a outra. No caso da trama, (a intolerância) exercida pela Igreja Católica por meio da figura mais importante de sua estrutura à época, o Papa Pio (no filme, vivido por Paolo Pierobon). Tal qual, o quanto o desejo de quem chega ao poder de fazer valer a vontade apenas por vaidade. E, do mesmo modo, a necessidade de se mostrar forte, mesmo sob a pressão do mundo. Insistir no erro, ainda que por pura teimosia.
Confira, a seguir, o trailer
Serviço
“O Sequestro do Papa”
O filme de Marco Bellocchio, baseado em acontecimentos reais, estreia no Brasil, nesta quinta-feira, 18 de julho. (Assim que as sessões foram divulgadas, atualizaremos a matéria)