Menu
Agenda Cultural

“Babilônia Tropical” ocupa CCBB BH até 5 de junho

A peça "Babilônia Tropical - A Nostalgia do Açúcar" tem sua estreia nacional em BH (foto: Julia Zakia/Divulgação)

A peça "Babilônia Tropical - A Nostalgia do Açúcar" tem sua estreia nacional em BH (foto: Julia Zakia/Divulgação)

A peça “Babilônia Tropical – A Nostalgia do Açúcar” trata de um evento histórico e de seus ecos nos dias atuais

Patrícia Cassese | Editora Assistente

Na última sexta-feira, a peça “Babilônia Tropical – A Nostalgia do Açúcar” estreou nacionalmente no Teatro I do CCBB BH, substituindo “Ficções”, de Rodrigo Portella, que, vale lembrar, fez um estrondoso sucesso na cidade.

Com idealização e direção de Marcos Damigo, “Babilônia Tropical”, que fica em cartaz até o dia 5 de junho, traz, no elenco, Carol Duarte, Ermi Panzo, Jamile Cazumbá e Leonardo Ventura. Detalhe: Ermi também assina a dramaturgia.

Ambientada no século XVII, quando houve a invasão holandesa no Nordeste, a trama de “Babilônia Tropical” gira em torno da personagem Anna Paes (Carol Duarte, conhecida por filmes como “A Vida Invisível”, de Karim Ainouz, ou por novelas como “A Força do Querer”), dona de um engenho em Pernambuco. Por meio da narrativa, a mazela da escravidão, assim como as condições precárias em que viviam os povos indígenas que habitavam o Nordeste no período, são, assim, colocadas em relevo.

Desnecessário lembrar que muito do que aconteceu ali, à época, deixou marcas tão profundas que, como resultado, seus reflexos se fazem sentir nos dias atuais.

Processo

Ao Culturadoria, Ermi lembra que sua entrada no projeto “Babilônia Tropical” se deu a partir do momento em que o idealizador, Marcos Damigo, durante as pesquisas do assunto eleito (Anna Paes), se deu conta que o mesmo abarcaria questões para as quais precisaria de alguém com lugar de fala. “Marcos, então, me convidou”, conta Ermi Panzo, que, além de ator e dramaturgo, é também poeta.

A ideia, prossegue Ermi, é tentar fazer o espectador de “Babilônia Tropical” entender o quanto ainda há de Anna Paes em cada branquitude nos dias atuais. “E o quanto se precisa para subvertermos questões que atravessam o espaço e a corporeidade negra nas mais váriadas realizações de convivio de relações humanas”.

Olhar para o passado

A atriz Jamile Cazumbá – que, em “Babilônia Tropical”, interpreta a personagem Milena – complementa: “Falar do passado do Brasil é tão importante quanto falar do presente, já que uma linha muito tênue separa um de outro em determinados aspectos”, analisa.

Particularmente, prossegue ela, quando os episódios do passado que estão em foco dizem respeito às violências, ao racismo e “a todas as categorias de subalternidade que os corpos socialmente e politicamente estão inseridos”. 

No entanto, olhar para o passado, entende Jamile, é um comportamento que envolve algumas camadas. “Primeiramente, a camada da importância de reconhecer a história. E, para tal, observar as questões coletivas e individuais nela presentes. Depois, a camada do apagamento, posto que tanto corpos quanto seus registros foram literalmente incendiados”. 

Assim, neste bojo, ela cita, em particular, a negação dos corpos indígenas, “que até hoje sofrem a violência de ter suas presenças e práticas negadas de forma desenfreada e muito explícita”. 

Invisibilização

A lacuna advinda dessa invisibilização do que alguns povos sofreram não é, assim, tão difícil de ser mapeada. “Primeiramente, podemos nos perguntar: quantos espaços museais que se referem ao quão violentos foram esses 500 anos de história do Brasil existem no país? Principalmente voltados para discutir a própria violência sofrida por esses povos sofrida, e não necessariamente como um lugar no qual a memória esteja inserida na categoria de acervos afro-brasileiros ou indígenas”.

Jamile defende, por exemplo, o olhar para acervos de objetos de tortura não como uma herança dos povos oprimidos, mas, sim, como herança da escravidão e do extermínio causados pelo processo de colonização. “Em primeiro lugar, é necessário que possamos nomear. Olhar para o passado é dar nome às coisas, já que a nomeação e a linguagem são pontos muito importantes dentro do espectro de violência. Assim, primeiramente, é nomear os corpos que violentaram. Logo, reconhecer que o Brasil tem um dívida histórica com os corpos negros e indígenas”.

Reparação histórica

Logo, a personagem central de “Babilônia Tropical”, Anna Paes, é, segundo Ermi, uma transfiguração humana no corpo, fala, privilégio, instituição contemporânea. “Dessa forma, ainda uma herança social da branquitude. Infelizmente, apesar de hoje existirem formas e caminhos combatentes”, lamenta.

O ator, escritor, poeta declamador, coreógrafo e bailarino performer Ermi Panzo (Julia Zakia/Divulgação)

Perguntado sobre todo o movimento (atualmente em curso) reivindicatório de uma reparação histórica, Ermi reconhece que, em iniciativas como “Babilônia Tropical”, é intrínseco o risco de que gerem controversas. “E, sobretudo, há gatilhos, que ferem a sensibilidade de um povo que ainda carrega máculas da outrização geracional”.

Entretanto, ressalta ele, é necessário trazer tais questões à tona, “acompanhadas de uma manutenção de comunicação e de ferramentas artísticas, de modo a utilidade urgente na chamada de atenção e reflexão para a reparação histórica e vias de fato para ocupação de direitos nos lugares fala e estar”.

Recursos tecnológicos

O espetáculo “Babilônia Tropical” propõe uma presença mais realista dos intérpretes no debate das questões levantadas pela tentativa de reconstituição histórica. Por outro lado, sugere um lirismo artístico ao recriar um diálogo possível entre passado, presente e futuro na utilização de recursos audiovisuais.

Esses recursos vão desde imagens de arquivos até filmagens realizadas em estúdio, incluindo o uso de inteligência artificial na criação. “A obra contempla um formato de apresentação telefísica no qual os recursos tecnológicos e a representação física diferenciada pela branquitude e negritude recriam possibilidades, experimentações que factuam um passado e um presente a serem assistidos com outros olhos”, reflete Ermi.

Consultoria

Cumpre frisar que o projeto recebeu apoio da Embaixada dos Países Baixos para o desenvolvimento da dramaturgia, o que possibilitou a realização de uma viagem do autor a Pernambuco e também a participação do historiador Daniel Breda no processo de pesquisa, além de uma imersão com o elenco da peça.

Confira, a seguir, outros trechos da entrevista com Jamile Cazumbá

Gostaria que falasse da sua personagem em “Babilônia Tropical”. Que listasse quais são as características que ela carrega e como foi o seu processo de preparação para interpretá-la….
Bom, a Milena é uma mulher negra, multiartista, que, em “Babilônia Tropical”, é convidada pelos seus amigos para integrar um projeto teatral. Ela aceita e, ao longo do processo de criação do espetáculo, vai se deparando com adversidades que, assim, colocam em xeque a relação dela com as pessoas envolvidas.

Na preparação desta personagem, distanciá-la de mim foi o maior desafio. Deixar um espaço livre de criação. Como eu ajo na minha vida não é necessariamente como a personagem age, apesar de nossas subjetividades serem muito próximas.

Logo, foi essencial criar um lugar para ela. Imaginar: quem ela é? Como age? No que acredita? O que vê? Sente? Quais as suas estratégias? De que forma se ativa e movimenta?

Sem dúvida, uma longa trajetória até o “nosso” encontro. Um grande desafio que agora está encontrando um lugar de existir com leveza, apesar de todas as circunstâncias.

Que questões, a seu ver, a peça “Babilônia Tropical” propõe ao público? 
É uma pergunta para a qual ainda não tenho uma concretude, pois, na minha opinião, é no contato com o público que “Babilônia Tropical” vai dizer e demonstrar a que se propõe. Não é uma troca unilateral, a troca de sensações que temos não é uma reconstituição histórica, mas, sim, uma tentativa ficcional de uma realidade. 

Estamos tratando sensivelmente das questões da branquitude. O lugar da raça que determina a posição de corpos dentro de uma perspectiva social, bem como da existência individual. O que gostaríamos de propor, por meio de “Babilônia Tropical”, é um diálogo. Destituindo a relação de peça e público, mas um lugar de compartilhamento sincero. O que desejamos construir. Um diálogo, uma tentativa.  

Para você, qual a importância de revisitar o passado do Brasil para refletirmos mais sobre esses pilares que sustentam uma sociedade tão injusta, racista, excludente?
Olhar para o passado é reconhecer como ele foi criado e como isso também vai impactando no processo de construção subjetiva do sujeito. Então, como o racismo impacta fisicamente, psiquicamente, socialmente, politicamente. Logo, olhar para o passado é poder olhar para o presente e criar oportunidades, criar amparo. Dessa forma, criar formas e tentativas de minimizar todos esses danos que já se anunciam e são projetados para gerações futuras. Então, em suma, é um comprometimento histórico com os povos negros e indígenas. 

Pra mim, como estudante de museologia, muito me interessa em pensar quais são as memórias e direito à memória. O que é preciso memorar e por quê? 

Acima de tudo, é importante trazermos como crítica o processo de romantização de como essas histórias vêm sendo contadas. Olhar para o passado é poder reconhecer os danos da violência e, portanto, configurando nossa sociedade no presente. 

Sei que uma temporada como essa, de “Babilônia Tropical”, consome tempo e energia a perder de vista, mas, ainda assim, vou ousar perguntar: está envolvida em algum outro projeto?
Bom, sim. Em primeiro lugar, estou rodando em festivais de cinema e artes visuais com o meu filme “Um Transe de Dez Milésimos de Segundos”, dirigido e performado por mim. Estou no processo de desenvolvimento e atuação de um solo que chama-se “Um ritual-recital-performático III ou um lugar que eu digo saber inventar”, que teve estreia em Lisboa e no Porto.

E, ainda, em desenvolvimento de um trabalho multilinguístico, no qual o resgate da minha família (Cazumbá) e da minha própria história se desenha entre a ficção e a realidade.

Também coordeno um grupo de formação para jovens artistas chamado Práticas Desobedientes. 

Por último, minhas inspirações neste momento têm vindo de muitos lugares, mas quem mais tem me acompanhado é a Denise Ferreira da Silva, Leda Maria Martins, Angela Figueiredo, Angela Davis, Conceição Evaristo, Cidinha da Silva, Ana Pi, Diane Lima, Castiel Vitorino, Jota Mombaça, Isabél Zuaa, Octavia Butler, bell hooks, Dani Ornellas. 

Serviço

Babilônia Tropical – A Nostalgia do Açúcar
Quando. Até 5 de junho, de sexta a segunda, às 20h30
Local: Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil (Praça da Liberdade, 450)
Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$15 (meia), disponíveis no site e na bilheteria
do CCBB BH.
Classificação indicativa: 14 anos
Duração do espetáculo: 80 minutos

Conteúdos Relacionados