Menu
Cinema

‘Arábia’: o cinema sensível e político na tela da Mostra de Cinema de Tiradentes

Sessão de Arábia. Crédito: Jackson Romanelli/Divulgação

Não é todo filme que consegue gerar empatia. Arábia, de Affonso Uchoa e João Dumans alcança esse feito. Faz mais. É político, contundente com o nosso tempo, tem leveza e humor.

 

Faz muito sentido o longa estar na programação da Mostra de Cinema de Tiradentes. Não apenas pela temática, já que é um total Chamado Realista, mas principalmente pela trajetória dos criadores.

 

Um dos sonhos de ouro de curadores e festivais é fazer as apostas certas.  Sabe aquela coisa de descobridores de talento? De revelar nomes da nova geração. Uchoa é cria de Tiradentes. Todos os filmes dele passaram pelo evento com o marco de ter conquistado em 2014 o cobiçado prêmio da Mostra Aurora.

 

Arábia não chegou aqui inédito. Veio depois de exibições no cultuado Festival de Roterdã, na Holanda, e dos prêmios do Festival de Brasília. Ou seja, bingo!

 

O FILME

 

Affonso Uchoa afirma que fez um épico. Dizer que Arábia é um road movie mineiro também faz sentido. Um olhar mais humorado sobre o filme o denomina “Forest Gump” de Minas. O roteiro acompanha a trajetória de Cristiano (Aristides de Sousa), um morador de Contagem que depois de passar um tempo na prisão, parte em odisseia por vários cantos do estado.

 

Cristiano cai na estrada, vai catar mexerica na roça, marretar em uma pedreira, fabricar tecidos, carregar de tudo um pouco e até operar fornos industriais. O trabalho é o que define a vida dele. Toda a narrativa parte da história que o protagonista registra em um caderno. Apesar de uma condição de sobrevivência muito rude, a forma como Cristiano olha para própria existência revela um homem sensível.

 

Debate do filme Arábia na Mostra de Cinema de Tiradentes. Crédito: Beto Staino/Divulgação

 

ENCENAÇÃO

 

A maior parte de Arábia é com voz em off. Há momentos de encenação. Geram estranhamento. Em alguns momentos até o off me soou estranho. Distante. Frio.

 

Segundo Affonso Uchoa, tal como o distanciamento proposto por Brecht no teatro, tudo foi proposital. Inclusive, foi totalmente consciente a mistura do elenco de atores com experiências esporádicas no cinema e nomes da cena teatral de BH Glaucia Vandeveld, Renata Cabral, Janaína Morse, Robson Abreu e outros.

 

DEBATE

 

O bacana do Festival de Tiradentes é a oportunidade de ouvir os criadores. Se a sensibilidade de Cristiano foi o que mais me chamou atenção, a questão não foi relevante na hora em quem mais de 100 pessoas se reuniram para debater Arábia. Falou-se sobre procedimentos narrativos, imitação da realidade, ficção e documentário. Ah sobre os bastidores também.

 

João Dumans contou que o objetivo era pensar uma história que tivesse um arco grande. Para Affonso Uchoa, o filme se relaciona com a história do Brasil. De maneira mais direta, sobre a situação do trabalhador. É de fato uma rotina que vai engolindo até chegar um momento em que o sujeito pensa “na ausência total de sentido em sua figura social”.

 

[culturadoriaads]

 

Debate do filme Arábia na Mostra de Cinema de Tiradentes. Crédito: Beto Staino/Divulgação

AUTENTICIDADE

 

O mediador da mesa, Francis Vogner dos Reis destacou o quanto Arábia é diferente de A Vizinhança do Tigre (2014). “Isso mostra que é sempre um tiro n’água tentar definir os filmes pelo estilo dos atores. Isso nos serve em alguma medida mas obviamente não serve para todas as carreiras dos diretores”, destacou.

 

Para João e Affonso a autenticidade de Arábia deveria vir da força da relação com o espectador. Atingir essa meta, não necessariamente significava recriar a realidade. “O cinema, como forma de arte, nos forneceu recursos formais que nos servem para ver o mundo e dizer sobre ele. Por que ficar restrito e fazer relações tão identitárias entre as coisas?”, perguntou Uchoa.

 

Deixar claro que alguns momentos são mesmo encenados, portanto, foram escolhas. “Estávamos cansados do registro muito baseado na eficiência. O ator ser eficiente é imitar perfeitamente. Chega uma hora que você não aguenta mais a farsa”, completou João. Eles queriam despertar a sensibilidade do espectador por outros lados.

 

PROCEDIMENTOS

 

Arábia foi feito em três anos. As filmagens se dividiram em 2014, 2015 e 2016. Além do roteiro propriamente dito, o off foi algo que demandou atenção especial. Tudo tinha cerca de 210 páginas, o que é fora dos padrões. “Dessas, tipo 150 era de off”, detalhou Affonso.

 

Além disso, no momento do set mudavam muita coisa, acrescentavam falas. “O texto foi nascendo de todos esses processos”, contou. A medida em que o diretor contava sobre os bastidores, a expressão do ator Aristides de Sousa mudava. Não deve ter sido uma empreitada fácil.

 

Aristides de Sousa, o intérprete de Cristiano, também fez parte de A vizinhança do Tigre. Ele diz se sentir representado pelo longa. “Vejo semelhanças como se pudesse ser minha vida”. Juninho, como é chamado pela equipe, diz encontrar novos significados no filme a cada projeção.

 

Da experiência com Affonso, aprendeu muitas coisas. Entre elas, que cinema é uma arte coletiva. “Se um acerta, todos ganham.  Se uma erra, todos perdem”. Mesmo que a repercussão do filme não seja unânime, pelo visto, até agora, Affonso Uchoa e companhia segue ganhando.

 

*A repórter viajou a convite da Mostra de Cinema de Tiradentes

 

[culturadoriaads]

Conteúdos Relacionados