“A outra filha”, escrito por Annie Ernaux, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura, acaba de ser lançado pela Fósforo Editora
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
Na quinta-feira santa de abril de 1938, uma menina de seis anos, filha de um casal de trabalhadores franceses, morre de difteria. Dois anos e meio depois, uma nova criança nasce neste seio familiar. Durante a primeira década de vida, a garota ignora a existência de uma irmã primogênita falecida. Até o dia em que escuta uma conversa entre a mãe e uma cliente. “Ela conta que tiveram outra filha além de mim e que ela morreu de difteria aos seis anos (…). E diz: ela morreu como uma santinha”. Este diálogo é arrematado com uma sentença que assombrará a criança ao longo dos anos: “Ela era mais boazinha do que aquela ali”.
A irmã caçula é Annie Ernaux, uma das maiores escritoras da atualidade, dona de um projeto literário bem particular, que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Literatura em 2022. Em “A outra filha”, a autora francesa investiga tanto a ausência quanto a presença dessa irmã em sua formação enquanto filha, mulher e escritora. Com tradução de Marília Garcia, o livro é um lançamento da Fósforo Editora.
História íntima e História social
Este é mais um capítulo de uma obra magistral, onde Annie Ernaux conecta a memória pessoal à memória social, atrelando tanto a história íntima, quanto uma História, com H maiúsculo, social. Para quem já leu Annie Ernaux, sabe o quanto o pessoal é a matéria primordial para a sua escrita, mas neste “A outra filha”, sinto que ela vai ainda além. Este é um dos seus livros mais íntimos. Breve e intenso – duas das características mais marcantes de boa parte de sua obra – esta nova obra parece comportar muito mais do que suas pouco mais de 60 páginas apresentam.
A partir do momento em que descobre ter uma irmã, um novo horizonte se abre na relação com a mãe e o pai – sobretudo a primeira – e, futuramente, com o seu projeto de escrita autobiográfica. Como esperado, Annie Ernaux encontra aqui caminhos para discutir o próprio fazer literário: “Tenho impressão de não ter língua para falar de você, para te nomear, impressão de só saber falar de você no modo da negação, do contínuo não ser. Você está fora da linguagem dos sentimentos e das emoções. Você é a antilinguagem”.
A vida contaminada pela ficção
A partir da escuta da emblemática fala da mãe – “Ela era mais boazinha do que aquela ali” – a própria vida de Ernaux parece se tornar ficção. Uma ficção que acontece em paralelo com aquela escrita, desde então, pelos próprios pais: Annie nunca lhes contou que descobrira a existência da irmã primogênita. “Por incrível que pareça, mantivemos a ficção”.
Vida e morte, presença e ausência, bom e mau, existência e inexistência. São muitas as supostas oposições – supostas pois se contaminam e dependem uma da outra para existir – que surgem ao longo da leitura. Numa abordagem fortemente psicanalítica, Annie Ernaux constrói um fragmentado jogo de espelhos na medida em que tenta reconstruir aquela que, enquanto presença física, nunca existiu em sua vida. “A outra filha” é escrito como uma carta direcionada à irmã. Uma carta consciente da impossibilidade de uma resposta. “Escrever para você é apenas trilhar o percurso da sua ausência. Descrever a herança da ausência. Você é uma forma vazia impossível de ser preenchida com a escrita”.
Encontre “A outra filha” aqui.
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel.
