
Foto: @vitorvieirafotografia
A vida é a prioridade máxima. Mesmo óbvio, esse alerta em tempos de pandemia parece soar mais alto aos nossos ouvidos. As questões estruturais da nossa sociedade não foram simplesmente implodidas. Estão lá, mesmo “deletadas” diante da urgência atual. Por exemplo, o racismo estrutural.
E na última semana, o mundo foi impactado pelas fortes imagens das manifestações em 75 cidades americanas. O motivo? O assassinato do ex-segurança George Floyd pelo policial Derek Chauvin, em Minneapolis (EUA), no último dia 25. Com isso, muitas questões tomaram minha cabeça: e se fosse um homem branco? “Estamos no meio de pandemia, come on! Não seria melhor nos preocuparmos com o nosso quintal? Give me a break!”, você pode pensar. Taí. Logo, melhor cuidarmos do nosso quintal. Talvez esse seria um bom recado ao nosso governo.
Quantos povos estão aí, dentro de você?
E pensando no Brasil, a minha inquietação aumenta. No entanto, será que nos anestesiamos com a morte de um jovem negro a cada 23 minutos? Que a cada 100 pessoas que sofrem homicídio, 71 são negras? Ou, naturalizamos a ideia romantizada de nação, trocando o termo escravidão e opressão por miscigenação? Assim, se dos 12 milhões de africanos raptados para cá, para as Américas, quatro vieram pra Terra Brasilis… Então, a maioria de nós, brasileiros, traz sangue negro nas veias, certo? Então, por que não desconstruímos o racismo? Você sabe as origens do seu DNA? Até onde sei, o meu tem africano, português, espanhol e holandês. Quantos povos estão aí, dentro de você?
Insisto em falar sobre o assunto (recriando este texto a cada nova leitura): sendo branco, racista, criado numa situação de privilégio num país desigual, posso falar sobre isso? Devo. Porém, não na perspectiva de quem sofre o racismo na pele. Mas como aliado da causa. Mas como podemos tomar uma atitude antirracista? O assunto me diz respeito. Assim, diz respeito a você, não acha?

foto: @vitorvieirafotografia
E no nosso Brasil?
Continuo minha busca pra lidar com o incômodo. Imediatamente, recorro a um dos livros que está na minha cabeceira, a voz de quem vive o problema na pele: Diálogos Contemporâneos Sobre Homens Negros e Masculinidades (Ciclo Contínuo Editorial), organizado por Henrique Restier e Rolf Malungo de Souza. Com certeza, abater a ignorância com conhecimento e sensibilidade é um tiro que não sai pela culatra.
Uma coletânea atualíssima de artigos sobre aspectos diversos das masculinidades brasileiras. A publicação aponta para as mazelas seculares que aproxima necropolítica brasileira a causa da morte de Floyd. “O estabelecimento de um determinado modo de ser no mundo forja-se a partir da negação de outros modos de ser, que não pode se dar senão por um processo de violência”, assina Lucas Veiga em um dos artigos. Você ainda acredita que o extermínio de negros, pardos e pobres no Brasil é fruto de uma casualidade genética?
Os inúmeros extermínios de “Joãos Pedros”, “Ágathas” e “Marielles” são uma construção histórica e intencional. Fato que aponta para a masculinidade hegemônica: patriarcal, racial, sexual, cultural e socioeconomicamente pautada no homem branco heterossexual. É. Onde tem conversa sobre masculinidades, é primordial pensar em classe, raça e gênero. Não foram os negros que construíram tal estrutura. Outro fato. Afinal, “a sexualidade, assim como outras formas de expressão humana, é mediada por conflitos de interesse e relações de poder e, nesse sentido, sexo é sempre político”, alerta o artigo de Osmundo Pinho nessa mesma coletânea.

Capas dos episódios 4, 6 e 13 do podcast Almasculina /
Foto: @vitorvieirafotografia / Arte: @glaurasantos.
Comece pelo seu vocabulário
No meio disso, surgem algumas memórias da minha infância. E outra questão: se os negros e pardos são 56% da nossa população, por que era a minoria na minha sala de aula, na minha rua ou no clube? Nos autores que li, nos filmes e programas que assisti? Que raios era aquilo de ter medo de ser assaltado na rua quando um negro viesse na minha direção? Quantas piadas e comentários racistas estiveram no meu repertório? Sendo de uma família de classe média, cristã, católica, por que muitas das mulheres que trabalharam em nossa casa eram na maioria negras? Aliás, por que eram mulheres? E já adulto, por que os negros eram a minoria nos palcos, filmes e séries que atuei?
Qual é a primeira imagem que vem à mente quando pensa em violência? Pense um segundo. Pronto. Mas já se perguntou, por quê? Provavelmente, é duro pensar isso. Dói. Mas culpa não resolve. No entanto, gera marcas que só a responsabilização minimiza. Mas, se você faz parte da maioria branca que se não se declara racista, passou da hora de rever seu vocabulário e refletir. Principalmente se acredita na prática da justiça e igualdade, esse papo diz respeito a você.
Podcasts
Pode ser um exercício novo, mas com o tempo e um pouco de abertura a gente aprende. Assim, já ouviu falar em “eugenia” e “hipersexualização”? E “racismo estrutural”, “necropolítica” e “branquitude”? Talvez já tenha tomado consciência dos seus privilégios? Ouça o episódio 6 do nosso podcast com o comunicador AD Junior e visite seu canal no YouTube. Uma aula!
Escute também os episódios 4 (com o ator David Junior) e o episódio 13 (com o articulador cultural Rodrigo França). Dê um play lá e depois me conte. Muitas pistas antirracistas até aqui, certo? E sigo com a certeza inicial: esse assunto nos diz muito respeito, não?
Black Lives Matters
Então, encontro no premiado documentário, disponível na Netflix, A 13ª Emenda, dirigido por Ava DuVernay, mais um triste e impecável raio-x dessa violenta ferida aberta. Assim, o filme escancara como a escravidão gerou um sistema de criminalização e prisão dos negros nos Estados Unidos, desde a criação da 13ª emenda à constituição americana. Porém, não sei o que é mais assustador: os números (25% da população carcerária do mundo está nos EUA, sendo 97% sem julgamento – Keep America Great!) ou a máfia monetária e corrupta que o sistema sustenta. No entanto, uma encruzilhada que “uma das maiores potências do mundo” enfrenta há décadas, sem qualquer perspectiva política de mudança.
Se lá está assim, imaginem aqui? Mais de 800 mil pessoas privadas de liberdade em todos os regimes, sendo cerca de 60% negra ou parda. Independente da língua, o significado é o mesmo: “O racismo é um sistema institucional e estruturante que age de formas diferentes na sociedade, atingindo níveis distintos, em escalas diversas, a fim de diminuir a população negra e marginalizá-la de todas as formas possíveis”, como descreve o artigo de Caio César. Esperança? Talvez só à medida que entendermos que a sociedade é reflexo de nossas ações mais íntimas. Logo, o que inclui nossos pressupostos e preconceitos. Assim, como agir com consciência a partir deles. Talvez, consigamos entender que ainda falta pensar em tanta coisa que “nos diz respeito”.

Capa dos livros Capa do livro Pequeno Manual Antirracista.
Créditos: Companhia das Letras e Capa do livro Lugar de Fala / créditos: Editora Letramento.
PS: Aprenda o que é “lugar de fala” e como ser “antirracista”? A filósofa brasileira Djamila Ribeiro, uma das 100 mulheres mais inspiradoras e influentes do mundo, eleita pela BBC em 2019, nos orienta em dois ótimos livros de bolso, leituras rápidas, inteligentes e obrigatórias: Lugar de Fala e Pequeno Manual Antirracista.
Assim, depois de ver o filme, não perca a entrevista da Oprah com a diretora Ava DuVernay, também disponível na Netflix. Um complemento que só enriquece o “despertar” dessa experiência.
Paulo Azevedo (@pauloazevedooficial) é ator e comunicador, idealizador do podcast almasculina.