
A última carta de amor. Foto: Netflix/Divulgação
É um sinal dos tempos. Cada vez mais, plataformas de streaming como Amazon Prime Video, Globoplay, Disney+ e HBO Max têm apostado em produções próprias. E, também como marca do nosso tempo, há também o investimento destes players no filão das adaptações literárias. A estreia de A última carta de amor, baseado no livro de Jojo Moyes, com Felicity Jones e Shailene Woodley reaquece a polêmica. Afinal, o que é melhor o livro ou o filme?
Desde os primórdios das transições dos livros para as telonas, existe uma imensa – e polêmica – discussão sobre a fidelidade de diretores e roteiristas nas produções cinematográficas. A falta, proposital, ou não, de detalhes e informações que contém nas obras literárias é o principal motivo de insatisfação entre os leitores.
Géssica Barbosa, de 23 anos e estudante de jornalismo em Belo Horizonte, é apaixonada pelos dois universos. Leu o primeiro livro quando estava no 5º ano do ensino fundamental através da biblioteca da escola. Amores em cena em uma noite de verão, de Claudia Abeling e Gerlis Zillgens, foi renovado tantas vezes que as bibliotecárias acabaram dando o livro de presente para ela.
“Eu simplesmente odeio [as adaptações literárias]. Para mim, a única adaptação que funcionou foi a dos livros de Anne of Green Gables, que é a mesma coisa de estar lendo o livro. Mas fora este as outras são péssimas e, como leitora, vou assistir algum filme para ver se concretizar o que li no livro e reforçar o que tinha imaginado, porém muita das vezes a única coisa em comum com as adaptações são o nome do filme e o nome dos personagens. Amo ler e ter meu mundo expandido pela imaginação e acho que meu pecado é ver as adaptações literárias sabendo que vou me decepcionar”, afirmou a futura jornalista.
Histórico das adaptações literárias
A primeira versão literária da pequena órfã, escrita pela autora canadense L. M. Montgomery, foi em junho de 1908. Onze anos mais tarde, em 1919, William Desmond Taylor dirigia a primeira adaptação de Anne of Green Gables, estrelada por Mary Miles Minter.
Desde então, inúmeras adequações começaram a surgir no cinema, teatros e TVs transformadas em filmes, peças e seriados. A mais recente foi produzida pela Netflix (sempre ela) em 2017.
A série, que conta com três temporadas, conquistou o público pela lealdade aos detalhes dos livros e por debater assuntos sociais importantes. A Netflix anunciou o fim de Anne with an E.
Umas das autoras da série, Moira Walley-Beckett, revelou em uma entrevista para a Entertainment Weekly que um filme pode ser produzido para fechar a história da melhor maneira possível e que ela adoraria fazê-lo. Então, quem sabe não teremos uma grande produção nas telonas e no streaming daqui um tempo.

Ame ou odeie?
Indo na contramão de Géssica, o escritor e auxiliar de produção de vídeos, Gabriel Gonçalves, de 19 anos, ressalta que o ódio e o amor por adaptações literárias caminham em uma linha tênue. Ele acredita que elas são extremamente necessárias.
“Os que não gostam de ler, por exemplo, podem ter a experiência do filme, que claro nunca dá conta de relatar da mesma maneira que o livro o faz. Aí está o poder da arte, ser maleável e capaz de se refazer em diversos formatos. Que tenhamos cada vez mais livros virando filmes ou séries”, relatou o escritor de Campos verdes, vastos pastos.
Das palavras para o visual
Os diversos formatos citados por Gabriel variam entre teatro, musicais, cinema, livros e agora o streaming. Grandes clássicos passeiam entre essas dimensões sem perder o público e a graciosidade.
Por exemplo, O Fantasma da Ópera, publicado pela primeira vez em 9 de outubro de 1986 é recordista em adaptações. Em 1989, a história teve a primeira gravação para as telonas, mas o sucesso maior foi o filme de 2004, com direção de Joel Schumacher, aclamado pela crítica e pelo público.
Ao todo, o filme arrecadou mais de US$154 milhões, duas vezes mais do que as despesas cinematográficas. Outro grande clássico que encantou o público de todos os formatos foi Os Miseráveis, de Victor Hugo, publicado em 1862.
Desde então, a história mantém seu sucesso nos palcos teatrais, nas páginas dos livros e nas telas de cinemas.
Os clássicos
Existem também empresas que investem em adaptações literárias. O estúdio da Disney, desde seus primórdios, transforma contos dos irmãos Grimm ou de Giambattista Basile em animações, como A Bela e a Fera, A Bela Adormecida e A Cinderela.
Ao longo dos anos, essas histórias foram se transformando em atrações teatrais, musicais, live-action e minisséries lançadas na própria plataforma: Disney+.
De acordo com os compilados das biografias de Walt Elias Disney, homem que deu à empresa seu nome, após perder dois personagens por falta de autenticação e o boicote de um dos sócios, Pot Powers, o desenhista começou a apostar em contos transformados em curta-metragem, a princípio.
Após três de produções e desenhos, Branca de Neve e os Sete Anões foi um sucesso tão grande que gerou fundos suficientes para que Walt pudesse construir um novo estúdio e torná-lo uma empresa conhecida em Hollywood.
O professor universitário, jornalista e escritor Leo Cunha, de 54 anos, publica livros para crianças e adolescentes desde 1993. Tem mais de 60 obras publicadas. Imerso em um mundo similar as produções da Disney, o escritor afirma que determinadas adaptações infanto-juvenis o incomodam, pois tentam forçar a barra para tornarem as histórias mais leves e inofensivas.
Ele diz ter produções ótimas e fiéis, como Coraline e o mundo secreto, mas existem os que são péssimos, como O Mistério da Feiurinha. De um panorama geral, Leo prefere não comparar os dois mundos. “Gosto de assistir adaptações, mas sempre evito ficar comparando, pois são universos muito diferentes. Os livros conseguem penetrar mais na mente dos personagens, o cinema consegue detalhar mais as ações e ambientes. Por isso e por outros motivos, dificilmente se consegue fazer uma adaptação muito fiel ao enredo de um romance”, afirma o jornalista.
Os desafios
São inegáveis as dificuldades e os desafios de ser 100% fiel a uma obra literária. Existem detalhes expressivos que autores colocam em livros que diretores e roteiristas não conseguem converter para o audiovisual.
É compreensível as cobranças de um leitor ao ver que a adaptação de um de seus livros favoritos não está do mesmo jeito que nas páginas ou da forma como ele esperava. Mas também é concebível que os produtores cinematográficos precisam adaptar as obras dentro de uma limitação.
Laurent Tirard escreveu Leçons de cinéma em 2009. O livro apresenta trechos de quem vivencia o mundo do cinema mundial. Mathieu Kassovitz é ator e cineasta francês e explica bem sobre a necessidade e limites do roteiro.
“Adaptar um romance é realmente um exercício de matemática cujo objetivo é determinar o que vai permanecer e o que será eliminado. Que é que devemos sacrificar, portanto, e o que será destacado? Naturalmente, ao fazer um filme, destacamos de preferência o que é visual, e tentamos eliminar o que é explicativo demais, ou então tentamos fazê-lo passar através de coisas visuais. No livro, são páginas e páginas para contar o passado do personagem central. No filme, não temos tempo”, relatou Kassovitz.