Curadoria de informação sobre artes e espetáculos, por Carolina Braga

Quarto Ato Abdias Nascimento entra em cena sob a regência de Xangô

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Novo desdobramento da parceria do Instituto Inhotim com o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro) já está em cartaz

Patrícia Cassese | Editora Assistente

Foi em 1980 que as livrarias brasileiras receberam o livro “O Quilombismo: Documentos de uma militância Pan-Africanista”, do ator, poeta, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, político e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras brasileiras Abdias Nascimento (1914 – 2011). A obra, ali chancelada pela Editora Vozes, compilava algumas das reflexões argutas e precisas do intelectual que, na verdade, já as vinham espraiando, seja no ambiente da cátedra quanto nos outros pelos quais esta figura basilar na luta contra a organização racista/discriminatória das sociedades circulou.

É justamente o título desse livro que nomeia o Quarto – e derradeiro – Ato do Programa Abdias Nascimento em conjunto com o Instituto Inhotim. Aberta no último dia 11 deste mês de novembro, a exposição coletiva “O Quilombismo: Documentos de uma militância Pan-Africanista” pode ser vista na Galeria Mata, por tempo indeterminado. Dividida em oito núcleos, traz, além de trabalhos de Abdias produzidos em diversas fases da carreira dele, obras de vários outros artistas.

O Quarto Ato da parceria Ipeafro e Inhotim já está disponível à visitação (Ícaro Moreno/Divulgação)
O Quarto Ato da parceria Ipeafro e Inhotim já está disponível à visitação (Ícaro Moreno/Divulgação)

A saber: LeRoi Caldwell Johson, Heitor dos Prazeres, Tunga, Yêdamaria, Sebastião Januário, Iberê Camargo, Diego Rivera, Emanoel Araújo, Regina Vater, Anna Bella Geiger, Fayga Ostrower, Flávio de Carvalho, José Heitor, Agnaldo Manuel dos Santos, Babatunde Folayemi, Melvin Edwards, Dayse Gomis e Marcel Diogo.

Sob a regência de Xangô

O Quarto Ato tem como eixo central a figura de Xangô, Orixá da justiça e presença constante no discurso e trabalho de Abdias. Não por outro motivo, Elisa Larkin Nascimento, viúva de Abdias, deu início à fala dela de apresentação da exposição à imprensa fazendo reverência ao orixá. No caso, cantando um ponto de Xangô do compositor e arranjador mineiro (radicado no Rio) Abigail Moura (1915-1970). Ele foi mentor da Orquestra Afro-Brasileira (em 1942) e colaborador do Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias Nascimento. “Eu começo falando de Xangô porque é ele que rege essa exposição. Assim como Oxum regeu o Primeiro Ato, Oxóssi, o segundo; e Exu, o terceiro. Então, aqui estamos sob a regência de Xangô”, disse a mestre em direito e em ciências sociais pela Universidade do Estado de Nova York e doutora em psicologia pela USP.

Ponto de Xangô

Diretora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros e curadora do acervo de Abdias, Elisa Larkin também fez, na ocasião, uma importante pontuação ao citar o motivo que a levou a dar início à explanação pelo Ponto de Xangô composto por Moura. “Se faço isso é porque Abdias nunca chegou sozinho. Ele sempre chegou trazendo aqueles que trabalhavam, lutavam, batalhavam junto a ele”.

A parceria entre o Instituto Inhotim e o Ipeafro – Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros foi firmada em 2020 – ano que, dispensável dizer, foi marcado pelo início do status de “pandemia” alusivo ao avanço da Covid-19. Assim, o Primeiro Ato do Programa Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra, que balizou a primeira exposição, só pode ser efetivamente inaugurado em dezembro do ano seguinte. Na sequência, como previsto, entraram em cena o segundo e o terceiro atos.

“Giro”

A partir do 11 de novembro, além do Quarto Ato do Programa Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra, o público que visita o Inhotim tem outra novidade para colocar no radar. Trata-se da obra “Giro” (2023), da artista Luana Vitra, comissionada especialmente para a Galeria Marcenaria. Aliás, desse modo, o espaço passa a exercer uma nova função: receber exposições temporárias no Inhotim, tal qual as galerias Lago, Fonte, Mata e Praça.

Sortilégio

Na verdade, no mesmo sábado de inauguração das exposições, dia 11, o Inhotim foi palco de uma experiência certamente memorável para os que tiveram a oportunidade de conferir: a montagem “Sortilégio – Mistério Negro”, de Abdias Nascimento, encenada por Adyr Assumpção. A peça também teve uma concorrida sessão no domingo.

Apresentação à imprensa

No caso específico do Quarto Ato, a apresentação aos jornalistas aconteceu na sexta, 10 de novembro. Por parte do Ipeafro, estavam, além de Elisa, Julio Menezes Silva. Ele é coordenador do projeto Museu de Arte Negra no ambiente virtual e, do mesmo modo, coordenador de comunicação no Ipeafro. Já da parte do Inhotim, por Júlia Rebouças, diretora artística adjunta e curadora-chefe do Instituto Inhotim; Douglas de Freitas, curador coordenador do Inhotim; e pelos curadores assistentes Deri Andrade e Lucas Menezes.

A apresentação à imprensa ocorreu na sexta-feira, dia 10 de novembro. Na foto, da esq. para a direita, Júlia, Douglas, Elisa, Deri e Lucas (Patrícia Cassese)
A apresentação à imprensa ocorreu na sexta-feira, dia 10 de novembro. Na foto, da esq. para a direita, Júlia, Douglas, Elisa, Deri, Julio e Lucas (Patrícia Cassese)

Primeira a falar, Júlia Rebouças lembrou que o fecho do programa fruto da parceria do Inhotim com o Ipeafro se dá em espírito de celebração. Sobre a iniciativa, aliás, a diretora lembrou que, de quebra, também firma um compromisso, por parte da instituição que só a obra de uma figura do calibre de Abdias Nascimento poderia disparar em um contexto institucional. Ela se referia a uma nova maneira de lidar com o entorno. “Com o território no qual a gente está inserido. E a maneira de a gente se relacionar com esse território. Enfim, para nós, foi, e está sendo, um aprendizado enorme, um legado. Mais que o que está materialmente manifestado aqui, por essa exposição, a marca desse pensamento, dessa poética sem dúvida permanecerá”.

Orixá da Justiça

Douglas de Freitas emendou lembrando que, na verdade, o livro “O Quilombismo” condensava as teses de Abdias que já circulavam . “A maneira de agir dele foi um pouco assim, pensar novas estruturas que não fossem as já estabelecidas, consolidadas. Formas mais dignas, justas. Portanto, a gente está falando muita de justiça neste ato. Então, essa exposição tem esse olhar, uma outra maneira de se pensar para a época, seja no teatro, na poesia, na politica, nas artes plásticas”. Vale lembrar que Xangô é o orixá da justiça.

2º Congresso de Cultura Negra das Américas

Elisa, por seu turno, lembrou que, concomitantemente à publicação do livro, Abdias Nascimento apresenta, no 2º Congresso de Cultura Negra das Américas, realizado no Panamá, em 1980, as linhas principais da tese dele sobre o Quilombismo. A iniciativa, lembrou ela, reúne representantes de povos que, mundo afora, buscam a libertação dos jugos da opressão colonial. “Naquela edição, artistas de todo o mundo ecoando essa mensagem em suas obras artísticas. A arte, como em toda a vida o Abdias se dedicou a mostrar, é uma trincheira, é uma forma de luta. É uma forma de construção da vida em liberdade e é uma forma de construção de caminhos para a plena vida humana no planeta”.

Ela acrescentou que o quilombismo também traz, no bojo, a necessidade de cuidar da terra, assim como os nossos ancestrais nas casas de candomblé, nas casas de tradição africana, nas casas dos povos originários. “Se nossas sociedades não começarem a aprender como cuidar do ambiente, estamos fadados a uma catástrofe – que, na verdade, está cada vez mais perto”.

Caminhos

Julio Menezes lembrou que, lá atrás, quando a parceria entre o Inhotim e o Ipeafro foi firmada, “ainda num contexto pandêmico”, as partes sabiam que, ao fim do ciclo, haveria muito a se comemorar. Mas, sim, no curso, dificuldades a serem enfrentadas. “No entanto, fundamentalmente, acho que (um dos legados) é possibilitar que o Inhotim amplie esse relacionamento com o entorno dele. E quando a gente tem aqui uma exposição que está sendo aberta e a presença do Adyr Assumpção encenando um espetáculo com base no texto do Abdias (a citada peça, que, como assinalado, foi apresentada nos dias 11 e 12 deste mês, em concorridas sessões), a gente sabe que se não cumpriu tudo que queria, certamente foram abertos caminhos para a ampliação da discussão de questões raciais no âmbito do museu”.

Menezes prosseguiu: “Entendo que essa parceria Inhotim-Ipeafro contribui para que (iniciativas afins) sejam levadas a outras organizações museais. Não como uma experiência acabada, perfeita, mas uma experiência que permita pensar o que é possível fazer para melhorar esse processo. Estamos aqui, hoje, e pretendemos fazer ainda muitas coisas até o final dessa parceria. Mas acredito que (ao fim) as portas estarão abertas para que outras pessoas negras, outras instituições negras, venham até aqui, ao Inhotim, e possam conversar com a instituição de uma forma muito mais igualitária”.

Cristo Negro

O curador Deri Andrade lembrou que a exposição “O Quilombismo”, no Inhotim, traz trabalhos que ajudam o público a contextualizar o concurso de artes plásticas sobre o tema do Cristo Negro, promovido pelo Teatro Experimental por ocasião do 36º Congresso Eucarístico Internacional, realizado no Rio de Janeiro em 1955. Idealizado por Abdias Nascimento e Guerreiro Ramos, o concurso teve apoio da revista Forma, segundo material do próprio Ipeafro. “Na mostra, a gente tem também uma série de trabalhos que acabaram de entrar para a coleção do Museu de Arte Negra”, destaca.

Em Berlim

Elisa Larkin acrescentou que, este ano, teve o privilégio de assistir, em Berlim, à exposição “O Quilombismo: Da Resistência e Persistência. Da Fuga como Ataque. Das Filosofias Políticas Alternativas Democráticas-Igualitária”, na Haus der Kulturen der Welt (Casa das Culturas do Mundo), em Berlim. “Que é uma das instiuições mais importantes da Europa. Nela, o novo diretor traz o quilombismo como uma proposta não apenas para os povos negros do Brasil. Mas, sim, para o Sul global e a diáspora como um todo. Porque a resistência já estava, por exemplo, na Venezuela, nos gumbes. Na Colômbia e em Cuba, nos palanques. Estava nos Cimarones, no México. (Tal qual) nos maroons do Caribe e nos EUA”.

Negação

Conforme a Agência Senado, foram as seguintes, as palavras de Abdias naquela casa: “O racismo não é um problema apenas de cor da pele. Sua natureza mais profunda reside na tentativa de desarticular um grupo humano pela negação de sua identidade coletiva. Assim, ao rotular de “negros”, “ladinos”, “pretos” ou “crioulos” os africanos e seus descendentes, o dominador pretendia arrancar-lhes a referência básica à sua condição humana. (Do mesmo modo), reduzir sua identidade à cor da pele, feita sinônimo de condenação à inferioridade e à condição de escravo. Até hoje as comunidades de origem africana nas Américas sofrem a falta de uma referência histórica que lhes permita construir uma autoimagem digna de respeito e autoestima”.

Em tempo: os Arquivos do Senado e da Câmara, em Brasília, guardam todos os discursos e projetos de lei do Abdias senador e deputado. Respectivamente,, em 1991-1992 e 1997-1999, e 1983-1986.

Serviço

Quarto Ato – O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan-Africanista, na
Galeria Mata
Luana Vitra, Giro (2023), na Galeria Marcenaria

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