
Flávia Lamary. Créditos Tertúlia
Livro de estreia “à vontade” convida leitor a adentrar uma habitação poética, onde a memória, o tempo, a infância e os relacionamentos fazem morada
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
“Palavras demais/ te pegam pela mão/ para garantir que/ não saia correndo”. Num dos primeiros poemas do livro de estreia dela no mercado editorial, a mineira Flávia Lamary olha para o próprio gesto poético, que pode surgir como um rompante, uma necessidade de colocar em palavras uma infinidade de coisas. “à vontade” é uma publicação da Editora Miguilim.
Sentir-se em casa
“à vontade” é um convite para se sentir em casa, nos diz Lamary logo antes de iniciarmos a leitura dos versos. O livro é dividido em partes, e cada uma delas parece um cômodo desta habitação para a qual a poeta nos empresta a chave para uma visita. “autopoemas”, “arrebatamento”, “à vontade”, “familiaridades” e “passatempo”. Ainda que independentes, estes “cômodos” possuem alguns canais de comunicação e interferência, construindo olhares para a memória, os relacionamentos, o tempo, a infância e o agora. Estão ali as memórias doces da fruta colhida do pé na fazenda e a passagem do tempo, que voa quando se está escrevendo.
Flávia Lamary começa cada uma dessas partes com uma epígrafe de uma poeta diferente. Wislawa Szymborska, Ana Martins Marques, Carol Saavedra, Adélia Prado e Hilda Hilst. Como mapas que apontam caminhos, cada uma dessas poetas pode ser um convite para a busca por referências que transformaram a Flávia leitora em Flávia poeta. Das duas primeiras, Lamary parece trazer um olhar atento para o cotidiano, para a rotina, para aquilo que acontece ao nosso redor mesmo quando não prestamos atenção. Está aí um valor caro à poesia: prestar atenção nas menores coisas.
Três poemas de “à vontade”
Ler em voz alta
Tem timbre que só o silêncio alcança
Sem título
Não peça para meu relógio
seguir esse ritmo normal.
No momento, 60 segundos são
duas horas.
Comecei a escrever cedo,
escureceu,
não se passou meia hora,
um tormento de dia comprido.
Talvez dure meses.
Desassossego
1.
A cerca imaginária
é alta,
de arame farpado,
um perigo.
2.
O gosto
da dor provável
contamina
o que se prova
3. De todas as verdades
a realidade é a que menos se nota

Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel