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Novo livro de Annie Ernaux debruça sobre a gênese da vergonha

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A francesa Annie Ernaux inicia “A vergonha” de modo direto e cortante: “Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde”

Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura

“Depois, aquele domingo passou a ser uma espécie de filtro que ficava entre mim e todas as coisas que eu vivia. Continuava brincando, lendo, agindo como antes, mas de algum modo estava ausente. Tudo se tornara artificial.”

Annie Ernaux - Foto Leonardo Cendamo - Getty Images
Annie Ernaux - Foto Leonardo Cendamo - Getty Images

A francesa Annie Ernaux inicia “A vergonha” de modo direto e cortante: “Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde”. Autora singular dentro do campo de autoficção e da escrita de si, Ernaux propõe neste livro mais do que um olhar para essa experiência traumática. A Nobel de Literatura se debruça sobre a gênese de um sentimento que tal acontecimento pareceu incutir em sua persona. Algo que, então, passaria a acompanhá-la ao longo dos anos: a vergonha. Com tradução de Marília Garcia, o livro é um lançamento da Fósforo Editora.

Memórias

Annie Ernaux guarda a lembrança da voz do pai no momento do surto. Era rouca, como nunca ouvira antes. “Na adega mal iluminada, meu pai agarrava minha mãe pelos ombros, ou pelo pescoço”. Na sequência, estão os três na cozinha. “Você vai me afundar na desgraça”, ela diz ao pai. Ao final, o retorno à normalidade cotidiana após o episódio de violência familiar. “Depois, saímos os três para andar de bicicleta numa área rural que ficava nos arredores. Na volta, meus pais reabriram o café, como faziam todos os domingos à noite. Nunca mais se falou no assunto”. 

O marco do trauma, fixa na memória o dia, o mês e o ano do acontecimento, ao lado de quaisquer pormenores que, num dia rotineiro, não teriam nenhuma importância. “Foi no dia 15 de junho de 1952. A primeira data precisa e clara da minha infância. Antes disso, há somente uma sucessão de dias e de datas escritas na lousa e nos calendários”.

Reflexões sobre o próprio ato da escrita

É interessante como, em Annie Ernaux, esse olhar para o passado e para a própria história é perpassado pela reflexão sobre o ato da escrita. A francesa nos diz que escreve aqui pela primeira vez sobre essa cena traumática da infância. “Até hoje, me parecia impossível fazer isso, mesmo num diário. Como se fosse uma ação proibida que traria um castigo. Talvez o de não poder escrever nada depois”. Mas, na verdade, o que ela percebe, sentindo uma espécie de alívio, é que continua escrevendo como antes, que nada de terrível aconteceu. Escrever sobre o ato, tira, em certa medida, o seu peso. A impressão de que ele se torna mais banal. “Talvez seja porque o relato, qualquer relato, normaliza o ato, inclusive o mais dramático deles”. 

Ao longo do processo de escrita, compartilhado conosco no livro, ela percebe que talvez esteja escrevendo um livro. “Se estou de fato começando a escrever um livro, como tenho a sensação por uma série de indícios”. Então, ela diz ter assumido o risco de ter revelado tudo de uma vez só. Afinal, ela já nos diz, logo na primeira frase de “A vergonha”, o motivo da escrita do livro. Mas Annie não deseja apenas descrevê-lo para nós leitores – e para si mesma, agora madura, na medida em que escreve. “Quero chacoalhar essa cena, há tantos anos congelada, para arrancar de dentro de mim seu caráter sagrado de ícone”.

A gênese da vergonha

Há a percepção de que a cena presenciada no ambiente doméstico naquele domingo não se encaixava em nenhum dos mundos os quais ela habitava fora de casa – o mundo da vizinhança, o mundo escolar. “Aquilo não podia ser dito a ninguém, em nenhum dos meus dois mundos. Ali tínhamos deixado de pertencer à categoria das pessoas corretas, que não bebem, que não batem umas nas outras e se vestem de modo adequado para ir à cidade”. Há uma espécie de “fim da inocência” por ter presenciado algo proibido, inimaginável. “Eu já não me parecia com as outras meninas da classe”. 

O sentimento de vergonha se aprofunda na jovem Annie. Uma vergonha que não se restringirá apenas ao acontecimento em si. Ele é o gatilho para que a adolescente observe com outros olhos sua própria condição social e de seus pais. Uma vergonha da classe e do papel que ocupa no jogo social. É essa inadequação que a autora investiga. Para isso, ela faz uma reconstrução minuciosa – e surpreendente – do mundo, da cidade e daqueles que a orbitavam aos 12 anos, em 1952. “É aqui que estou, num fim de tarde dos últimos dias de maio ou começo de junho, antes da cena. Terminei de fazer meus deveres de casa, tudo está tranquilo.Tenho um sentimento de futuro”. 

Reflexões

Annie Ernaux faz uma reflexão dolorosa sobre a vergonha, sobre o peso de carregá-la dentro de si, como parte intrínseca da própria existência. “A vergonha” é mais um capítulo dessa “grande obra” de Ernaux, onde ela rememora, reconstrói e analisa sua história pessoal à luz de uma história maior. Essa relação entre público e privado e a maneira como a intimidade é a matéria primordial para o fazer literário da laureada com o Nobel é algo que não deixa de me surpreender e comover, livro após livro. Um gesto singular de uma sinceridade feroz. “Mas nada pode apagar o que senti, esse peso, esse aniquilamento. Ele é a derradeira verdade. É ele que une a menina de 1952 à mulher que escreve essas palavras”.

Capa do livro A vergonha - Fósforo Editora
Capa do livro A vergonha – Fósforo Editora

Encontre “A vergonha” aqui

Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)

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