
Foto: Daryan Dornelles / Divulgação
Aos 91 de idade, Elza Soares deixa uma herança cultural incomparável, construída ao longo dos seus setenta anos de carreira.
Por Letícia Finamore | Culturadora
O dia 20 de janeiro de 2022 amanheceu tranquilo e adormeceu calado. Elza Soares, uma das vozes mais potentes e reconhecidas da música brasileira, fez uma sessão de fisioterapia na parte da manhã e logo à tarde começou a ficar ofegante. Embora a cantora afirmasse que estava bem, a família percebeu uma certa queda na oxigenação de Elza. “Acho que vou morrer”, disse a artista. Não demorou para que a cantora nos deixasse: pouco tempo depois, a morte por causas naturais foi atestada. Para quem teve uma vida cheia de atribulações, Elza Soares morreu em paz.
Soares, sobrenome pelo qual conhecemos uma das maiores artistas brasileiras, não era de Elza por batismo. A cantora nasceu Elza Gomes da Conceição, em 23 de junho de 1930, no Rio de Janeiro. A mãe era lavadeira e o pai operário. Por obrigação deste, a artista se casou aos 12 anos com Lourdes Antônio Soares, que a deu parte do nome pelo qual conhecemos a artista. Com ele, Elza teve sete filhos, dois dos quais morreram de fome antes mesmo que a cantora completasse quinze anos de idade e uma que fora sequestrada por um casal amigo da família. Assim como o matrimônio, o viuvez chegou cedo: aos 21 anos.

Lama
Depois de tais experiências, Elza Soares começou a investir na carreira. A cantora começou a soltar a voz com o pai, que eventualmente tocava violão nas horas vagas. Viúva e com filhos para cuidar, a cantora se inscreveu no concurso musical radiofônico Calouros em Desfile, apresentado pelo compositor Ary Barroso. Ao subir ao palco, o apresentador gozou de Elza por causa das roupas da jovem, porém depois de sua performance da canção “Lama”, de Paulo Marques e Alyce Chaves, Barroso anunciou que uma estrela havia nascido. A artista ficou em primeiro lugar no concurso.
Elza Soares chamou a atenção com sua apresentação de “Lama”, porém foi com “Se Acaso Você Chegasse”, composição de Lupicínio Rodrigues, que a artista conseguiu sucesso como cantora profissional, em 1960. Dois anos depois, Elza foi convidada para cantar para a Seleção Brasileira de Futebol, que se encontrava no Chile em decorrência da Copa do Mundo de Futebol Masculino – evento em que o Brasil foi campeão. Por lá a cantora conheceu o cantor estadunidense Louis Armstrong, que ficou encantado com a potência vocal da artista.
Amor
Além de seu encontro com Armstrong, uma paixão surgiu nessa mesma viagem: Elza se encantou com Mané Garrincha, jogador brasileiro. Os dois começaram a se relacionar e o casal virou alvo da imprensa, uma vez que Garrincha era casado. Em resposta à sociedade conservadora, a artista gravou a canção “Eu Sou A Outra”, na qual canta “Quem me condena/ Como se condena uma mulher perdida/ Só me vê na vida dele/ Mas não vê na minha vida”. Pouco tempo depois, Garrincha foi morar com Elza em sua casa no Rio de Janeiro. Durante a ditadura militar, a residência do casal foi metralhada, e por isso a família se mudou para a Itália, onde conheceram Chico Buarque e Marieta Severo.

Os problemas com Garrincha não se restringiam apenas ao início do relacionamento do casal, enquanto o jogador era casado, mas também abrangiam episódios de violência doméstica e de alcoolismo, por parte do jogador. Juntos, tiveram um filho, apelidado de Garrinchinha, que morreu aos nove anos em um acidente de carro. O craque do Botafogo morreu três anos antes da morte do filho em decorrência dos desdobramentos de seu alcoolismo, que resultou em uma cirrose hepática. Garrincha foi o grande amor de Elza Soares e, coincidência ou não, ambos morreram no mesmo dia, porém com trinta e nove anos de diferença: Tanto Elza quanto Garrincha partiram em um dia vinte de janeiro.
Reinvenções
Tantos abalos na vida da artista não a fizeram desistir. Mesmo nos anos 1980, em seu período de menor sucesso, o desânimo de Elza foi desfeito por Caetano Veloso, que a chamou para trabalhar com ele. Sua discografia passeia por diversos gêneros: samba, jazz, música eletrônica, funk e hip hop. A cantora sempre buscava se reinventar, mesmo com a idade avançada. Além de seus renascimentos artísticos, Elza renovava conceitos que eram cristalizados na época em que cresceu. Dessa forma, a cantora abraçou causas do movimento negro, feminista e LGBTQIA+. Bem como um símbolo de empoderamento, Elza transformou a cultura brasileira em diversos âmbitos.

No ano de 2000, ao se apresentar em Londres ao lado de Gal Costa, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Virgínia Rodrigues, a rádio londrina BBC premiou Elza Soares com o título de “Melhor Cantora do Milênio”. Um de seus discos mais potentes é “A Mulher Do Fim Do Mundo”, lançado em 2015. Em uma composição homônima, Elza Soares canta “Me deixem cantar até o fim”. E assim foi feito: a cantora continuou em atividade até seu penúltimo dia de vida, quando gravou um DVD no Theatro Municipal de São Paulo. Assim como o conteúdo audiovisual, um álbum de estúdio está programado para ter lançamento póstumo; ambos os trabalhos ainda não têm data para vir ao mundo. A mulher do fim do mundo não só cantou até o fim, como também terá sua voz ecoada por todos os cantos até mesmo depois do fim.