Um festival de cinema têm significados diferentes para as pessoas que passam por ele. Para a imprensa, significa trabalho. Para os realizadores, é uma oportunidade de apresentar suas obras. Já para o público, é uma chance de ter acesso a filmes que dificilmente serão encontrados em outros lugares.
A Mostra de Tiradentes, além de reunir indivíduos com objetivos específicos, se destaca por promover uma interação entre eles. Não é todo dia que se vê um filme sendo discutido tão profundamente quanto nas sessões de “Encontro com os filmes”, por exemplo. Críticos, fãs e cineastas, reunidos para promover uma necessária democratização do audiovisual. Uma área historicamente elitizada no país.
Graças à definição do tema “Chamado Realista” para a mostra deste ano, o cenário político atual, questões raciais, de gênero e até mesmo existenciais foram muito presentes ao longo da programação. Como não poderia deixar de ser, afinal, tratam-se de realidades no cenário brasileiro.
Ao longo dos nove dias de programação, foram exibidos mais de 100 filmes brasileiros em pré-estreias nacionais, nos espaços Cine-Praça, Cine-Tenda, Cine-Lounge e Cine-Teatro. Atendendo a um público estimado de 35 mil pessoas, segundo a organização.
Públicos de todas as idades passaram por Tiradentes. Mas foram os jovens profissionais do audiovisual, com ideias inovadoras, muito assunto e disposição que se destacaram. Muitos deles buscavam apenas uma oportunidade para mostrar seus talentos. Exercitando gêneros e reinventando estéticas, formas e linguagens.
O contato direto e constante com tantas obras e profissionais serviu ao propósito de reascender a paixão pelo cinema no público. Que passa a fazer uma reflexão sobre os filmes e seus atrativos.
“Lembro mais dos corvos”: a luta dos transexuais contra a exotificação
Além da experiência sensorial e da qualidade da narrativa, bons personagens são fundamentais para o sucesso de um filme. Conhecer a fundo e acompanhar a trajetória de um individuo é o que provoca real engajamento do público.
Nenhum outro filme exibido na mostra Aurora foi tão bem sucedido nesse aspecto quanto “Lembro mais dos corvos”. Trata-se de uma simples conversa com a atriz Julia Katharine. Uma mulher transexual, que se abre de forma inspiradora para o público neste documentário de Gustavo Vinagre.
Apesar de sua simplicidade, o longa nos permite conhecer profundamente o universo dessa personagem. Seus traumas, preferências e paixões. Tudo isso utilizando uma certa realidade ensaiada como linguagem. A forma com que o diretor filma este grande diálogo é brilhante. Chama atenção a cena da aproximação dramática que ele faz no exato momento em que Julia usa a palavra “pedofilia” pela primeira vez, demonstrando pleno domínio de sua narrativa.
Um dos momentos mais marcantes do debate realizado após a exibição, foi o momento em que Julia tomou o microfone para esclarecer que a superação do preconceito só será completa quando a transsexualidade deixar de ser usada para definir os indivíduos. “Não sou uma atriz trans. Sou uma mulher trans, e meu ofício é ser atriz”, desabafou.
“Rebento”: o prazer de se tentar decifrar um personagem
Rebento, do diretor André Morais, último filme exibido na mostra Aurora, também é muito calcado em sua personagem principal. O longa se inicia com uma sequência fortíssima. Maria (Ingrid Trigueiro) leva seu bebê ao rio para matá-lo, minutos após dar a luz. A partir daí, somos convidados a passar este dia com a personagem e tentar compreendê-la.
Seria uma crítica à interferência do estado no corpo da mulher? Uma referência à depressão pós-parto? Todas as hipóteses são válidas. Aqui, ao contrário de “Corvos”, temos uma personagem principal que fala pouco. Ela entrega mais ao espectador através de seus olhares e atitudes do que de palavras. “Em vez de tentar responder o porquê, eu resolvi investir no mistério”, justificou o diretor.
Trata-se de um filme no estilo “road trip”. A melhor oportunidade que o espectador tem de decifrar essa personagem é analisando a forma com que ela reage a cada uma das figuras que cruzam o seu caminho.
Quanto à linguagem empregada, chama atenção a forma com que o André parece se interessar mais pelos detalhes, pelas partes do corpo de Maria, do que por planos convencionais do rosto. Além disso, ele acredita e investe fortemente na força de suas imagens. A cena em que ela se olha no espelho pela primeira vez após a realização do abominável ato é simplesmente memorável.
*Viajou a convite da Mostra de Cinema de Tiradentes